sexta-feira, 30 de outubro de 2009

terça-feira, 27 de outubro de 2009

"Benevolência"

Parece que foi inventada, a minha existência, mas não foi proposital, um mero acidente de percurso nos planos de deus. Talvez seja isso mesmo e verdadeiramente não me importa mais o modo como dispenso repentinamente os gestos que venho repetindo ao acumular dos anos, o inevitável teatro dos dias, a inutilidade do eu enquanto eu pequeno, ignorante, adormecendo dia após dia, noite após noite, um turbilhão de ações e pensamentos indefinidos sem real nome, sem a real presença e definição que se espera de alguém feito eu.

Qual a utilidade, o real objetivo, o significado aí intrínseco, quase imperceptível e soturno demais para ser à tempo percebido, de ser eu, quem eu sou, quem pareço ser mesmo não sendo, a casca humana com trejeito involuntário, cuidadosamente ensaiado, moldada a partir do cotidiano, fruto daqueles que me precederam, se ao final de tudo não sirvo nem para impedir a morte lenta das pessoas que amo, o seu distanciamento tão certo quanto o ar preenchendo os pulmões, esse egoísmo irrefutável de quere-los próximos, todos eles; essa minha mania idiota de mudar as coisas, se não consigo fazer com que também eles, egoístas e ignominiosos feitos eu, não levem suas vidas embora e me abandonem numa esquina qualquer com a minha mente a pregar-me peças ao final da noite? E quantas vidas é preciso viver para se obter a simples resposta à essa pergunta fundamental?

Para isto servimos afinal? Para sermos infinitamente egoístas uns com os outros, para dizer que nos amamos sabendo, furtivamente, que desconhecemos o amor tal como o idealizamos... o teatro das razões, a peça que nos pregamos a nós mesmos, as vaidades aí proscritas, a benevolência que acreditamos sustentar às vezes, dentro de nós mesmos, essa querida voz interior que nos faz pensar que está tudo bem, e a cortina cobrindo sempre, privando-nos de nós mesmos.

Estou cansada, faz tempo, e vivi somente duas dezenas de anos, o bastante para enxergar o vazio dentro de nós, o suficiente para pressenti-lo enquanto a boca sorri, fala, perde-se em outras bocas, a mão que entrelaça quem eu acredito amar nesse momento.

Quem aqui sabe tanto quanto lê, pode-se então fazer-se vivo enquanto me lê. Não é desgosto nenhum ser lida, nem ser esquecida, nem nada. É desgosto estar trancada em linhas retas, entretanto, sem nem o saber. Finjo que sei, só finjo, quem é que não o sabe de pronto? Quem é que vive sem o saber? Eu vou lhes dizer do que é o desgosto e de como ele veio até minha janela noite passada, como único acompanhante.

De quem poderia dizer senão desse sujeito que me mata noite após noite? É que muito cedo na vida eu o conheci, o desgosto. Não faz tempo, não faz quase nada, só minha vida debruçada sobre as nuvens lá em cima. O desgosto me cegou, estou cega, talvez você possa dizer o mesmo, talvez nunca se encontre aqui em meio às linhas. De fato nunca vi nada além do que minha imaginação me propõe ver, porque estou cega desde sempre. Sempre conjecturando acerca da vida, foi assim que vim ao mundo, não poderia ser diferente.

Cá estava eu com meus botões, pensava um pouco sobre a vida, o pouco que sei disso, só um pouco, quase nada. É que não vim aqui para saber, não sei. Assumi o papel de telespectadora faz tempo, foi o que me salvou.
Assisto-me aqui, enquanto imagino que sou capaz de assistir a quem me lê. Então conto-lhes as estórias, imparcial. Sou e não sou eu aqui, lhes dizendo estas coisas. Não ignore se estas mesmas acusações vierem até você futuramente. Ninguém é, está. Todo mundo se parece alguma coisa, sobretudo, a própria aparência de ser algo que não se é. Quantas vidas é preciso para entendê-lo é que não se sabe mesmo, mas para ser sincera comigo mesma apenas esta já me seria o suficiente.

Vive-se aí o tempo suficiente para sanar essa dúvida mortal, e há quem prefira viver a vida toda. Eu desde cedo sanei as dívidas, até hoje estou sanando. Para que é que não sei; de fato o saberei ao final disso, é a lógica intrínseca da vida, tem de ser.
Mas não volto atrás por causa das dúvidas. Como poderia? Se de fato estou cega de que me adiantaria voltar no tempo?

O meu desgosto é o que me mantém sóbria, é maior que o tamanho de átomos histéricos, é muito maior, talvez maior que eu mesma, e ainda assim ridiculamente pequeno considerando-me um grão de areia na alma do deserto, e depois no mar, e depois sobre a terra que é a nossa casa, e depois em meio a esta imensa galáxia a qual estamos todos sujeitos, inertes, ignorantes.

A condição da consciência sobre o tamanho diminuto do existir é única e infringível, deve-se a ela esse respeito mudo de não saber nada, de não parecer nada, de não intentar saber nada. Deve-se a ela, talvez, esse teatro todo de nossa condição humana, desses gestos vãos, quase medíocres, a respeito da vida, do amor, e depois da morte.

Não acredito que haja a verdadeira benevolência entre nós, se houvesse não seríamos tão pequenos. Benevolência é saber disto, é ser sincera consigo mesma, sabendo que a única bondade que podemos esperar uns dos outros é que não sejamos tão ruins quanto acreditamos ser e ponto final.
Mas a mente prega peças. Instintivamente sei que também estas palavras perderão o sentido, porque estou cega, reconheço-me cega, e depois é o que se espera no final, e do final nada sei. Tomara que seja benevolente com a minha ignorância, para que também toda essa indignação não vire teatro quando eu estiver já velha demais para sequer respirar...

domingo, 4 de outubro de 2009

tu, meu amor. Absolutamente nenhum outro alguém.