terça-feira, 9 de novembro de 2010

sobre as despedidas

Aconchego-me repentinamente em teus braços para que saibas que procuro por tua proteção. Estive cansada demais de todas as complexidades do mundo e agora busco um gesto simples que faça com que tudo o quanto acredito não sucumba à hostilidade alheia. Entrego-me na hora da partida, te digo que não precisa ser assim, com dor que grita aqui dentro, te sinto afastando-se, sumindo à vista e não posso conter os olhos que, cheios d’água, já não sabem se despencam com o resto do corpo definitivamente. Tenho as mãos inquietas num ímpeto de te segurar mais um pouquinho, mas elas se voltam contra mim e dizem num gesto de segundos que você vai ficar bem, que nem o meu mundo nem o seu despencará por causa disto.


Eu que andei em caminhos que antes não andava, que estive bem ali, na corda bamba, e que ainda debato-me em confusão para voltar àquela rua que sei ser segura, eu te dou o melhor de mim e te digo que olhes tudo isto de cima, porque eu mesma já não posso, eu mesma já tenho a pele febril que antecipa a falta do teu toque.

Digo isso olhando-te nos olhos porque são esses que querem te falar, ao passo que sei que depois de tudo isso ainda terei de fazer as malas, olhar pra frente e ir embora deixando todo o resto para trás, como você hoje, à sua maneira, faz.

quinta-feira, 7 de outubro de 2010

breve estória de Narciso

Dois jovens deitaram-se sobre o areal. O som do mar distante os envolveu de súbito, a paisagem continuou naquela eternidade branda, clara como a neve, a areia da praia clara como a neve. A moça tem cabelos longos, fios que brilham sob o sol de verão mas que são escuros, escorridos, densos como o calor naquele país distante. O outro jovem é um moço de olhos amendoados, ele não tira os olhos dela, todos percebem que ele é seu cúmplice. Ele persegue o vulto do seu corpo, ele a adora, abraça-a. Ela então sussurra para ele, de repente grita. O que ela diz é que ele não ouvirá nenhum som, mais nada esta manhã, além desse eco que sobe do mar no horizonte, ela aponta em direção ao mar. Ele lhe sorri, os olhos sorriem para ela. Ele é Narciso, é o que é para mim, e eu digo que ela repete:


- Você não mais ouvirá o som do piano. E você esquecerá tudo, atém a mim.


A voz, sua voz é doce, mas Narciso nega ao passo que ela escuta dele:


- Você, nunca.


Ela o agarra, com força desesperada, o mantém mais perto, diz aproxime-se. O nome dela é ainda segredo para mim, está oculto, pode ser que nem esteja ao longo do texto, nunca. Ele a obedece, está rendido, cheira seus cabelos longos, repete o gesto muitas vezes ainda.


Depois Narciso dirá que quer cavalgar, ela dirá que a chuva se aproxima, mas que o quer tanto quanto ele, que cavalgar na praia é como um sonho, um desejo de criança. Eles permanecerão no mesmo lugar, é isso, essa estória acontece na mesma imobilidade de sempre, uma nova versão de si mesma no instante em que pára ou segue freneticamente o impulso vital do existir. É verdade que a essa altura o mar terá se tornado turvo, sim, mesclado ao céu escuro, mas o vento levará da praia toda a lembrança dos jovens antes que a chuva caia. E depois choverá por toda a orla, digo por toda a cidade, por toda a extensão do mar.

quarta-feira, 1 de setembro de 2010

cansaço químico.

Devido ao cansaço extremo deitam-se sobre a cama os corpos frágeis. Estão rendidos sem que seja necessário o uso da palavra, isso, rendidos em suas dores particulares, entregues aos lençóis vermelhos como na lembrança da menina, mas são poucas as vezes em que se encontram dessa forma agora. No quarto ela diz, gesticula:

- não sei se estou sendo você ou eu. Estou apavorada de ser quem estou sendo.
- provavelmente as duas coisas, uma coisa só.
- provavelmente sim.

Ele é impassível quando diz abrace-a. Mas não é isso, o instante não acontece. É que estamos esperando que algum conhecimento ou alguma ignorância nos ensine, quando sabemos através da obviedade das coisas que nada pode nos ensinar nesse quarto fechado. A verdade é que não há nada que transponha essa barreira de quem somos no instante em que nos deixamos para ser entre essas paredes cúmplices. Há uma aceitação, uma sentença muda que percorre os espaços vazios, e então mais nada se move nesse quarto, tudo está em seu devido lugar, com a exatidão da existência, nas linhas e contornos, os ângulos do quarto, você vê que os amantes são impedidos por causa dessa imobilidade brutal.

O que é que então estamos fazendo além de coexistir?

O mesmo silêncio.

[...] as duas coisas, uma coisa só.

sexta-feira, 27 de agosto de 2010

sexta-feira, 23 de julho de 2010

Há vezes em que

uso o silêncio para pronunciar teu nome, há vezes em que escrever é mesmo oculta-lo entre palavras livres, mas eu nem me lembro mais de como é isso. Fujo ao certo porque o errado me absorve e nessa estória de amar sem sofrimento chove. Chove muito. Uma chuva que transborda a alma, os olhos.


Lá fora também. Chove como em todos os meses de julho, as pessoas, lembro-me como se as tivesse na frente dos olhos agora, se amontoam nos supermercados, nas panificadoras, nos estacionamentos, se assemelham enquanto disputam um lugar seguro da chuva, irremediavelmente próximas durante minutos.
 Então digo-lhe que tenho algo para ser entregue, algo que é mais teu do que eu. Mas você não pode me responder porque não foi solicitada, você já não existe, não é? É fruto do meu esforço diário por te resgatar intocável no pensamento.
Se eu contasse as vezes as quais juro que estou falando contigo quando já não estás, perderia a conta nesse mundo das significações. Entretanto não se quer ouvir, esse tipo de comentário, se ignora, a contagem dos dias que nos faltam para então o nada é idéia a qual abandona-se, deixa-se estar.

Tudo é facilmente corrompido em meu corpo, salvo você. O resto, sim, é esquecido, a cidade, as pessoas, as ruas que dão em ruas e o vazio esparso entre elas, salvo você.

Entretanto chove e isso me é como uma verdade eterna maior do que sua ausência nos meus dias. Não queria declarar que estas palavras me saem despercebidas, disparadas por vontades contrárias mas penso que é como os relâmpagos que chegam urgentes e são vistos no reflexo da minha janela, como se fossem respostas remanescentes para tanto descaso.

Sei que é nesse ricochetear provisório que tu adentras o quarto.

sábado, 10 de julho de 2010

Por isso é que te escrevo

Existem variados motivos para te agradecer agora, mas a vista daqui de cima é tão grandiosa que fez meus olhos estranharem essa luminosidade que sobe da cidade à noite e acabei deixando as palavras de lado quando meu corpo já não fazia questão de lembrar o toque na pele de outro alguém. Contudo, sei que você me observa, com o canto do olho e mal disfarçadamente, você me mantém fixa nessa cena e estremeço só de pensar no que você pode estar pensando agora que tudo o que nos encobre é o reluzir das estrelas no firmamento. Então espero, silencio, espero e você me chama, diz olhe, eu vejo. Afirmo que não distinguo uma constelação de outra e digo a mim mesma que eu não poderia ter menos jeito de te tratar do que já tenho, sorrindo baixinho explico que é por causa dessa luminosidade que fico tão atrapalhada.

Digo, acima de nós existe mais vida, e você ri dessa minha pequena loucura inocente. Digo-lhe em pensamento, esperando que você tenha desenvolvido algum tipo de telepatia, que o que não existem são palavras certas, frases de impacto resoluto, que eventualmente poderiam te explicar quão agradecida fico diante dos pequenos prazeres da vida vindos dos amigos repentinos, que me contam estórias da história e me fazem perceber sobressaltada que isso é maior do que tudo o que tem me acontecido ultimamente.

Eu não sei até onde vai essa estrada, mas eu a conheço como a palma da minha mão, já que tenho andado nela tempo suficiente para saber levantar rápido depois de um tombo feio. Não tenho medo de dizer que também não vai dar em nada, de errar afirmando ou supondo coisas que não me cabem, não. Tenho é medo apenas e tão apenas de sair distraída mundo afora esquecendo-me de agradecer quem tem me esbarrado com tanta graça e sorriso espontâneo.  Por isso é que estas palavras que escrevo intuitivamente são tuas, e para isso te poupo até de ter que desenvolver telepatia...


quinta-feira, 8 de julho de 2010

Enquanto isso, na enfermaria, todos os doentes estão cantando sucessos populares.
Sucessos populares...


[mais do mesmo - legião urbana]

sexta-feira, 25 de junho de 2010

O amor da vida de minha mãe

é o seu filho mais novo, que já atingiu a maioridade. A esse amor ela protege com a vida. A esse amor ela banca, paga seus cigarros, suas dívidas, a droga que consome, as garrafas de bebida. O amor de minha mãe grita, agride, perturba a vida dessa filha que ela deixou a um canto porque tudo nessa filha lhe lembra um casamento mal sucedido. Ele a furta, leva embora suas coisas com essa facilidade brutal, esse talento que tem para  o mal. Ele também a agride, é verdade, mas isso não se conta a ninguém.
A mãe não vê, essas coisas, a mãe ignora. A vida da sua filha primeira está bem aí, entre os escombros que sobraram das agressões e os sorrisos que inventa para acreditar que a vida é lá muito boa pra se pensar nisso aqui.
Não é verdade que existam dois lugares nessa casa para os dois filhos de minha mãe, não existe. Se existia terminou-se por vir abaixo, quando esse amor de minha mãe espancou a porta até ela quebrar-se por inteiro. O quarto também, confesso a contragosto, é quase uma ilusão de tanto que teima em existir. É uma tentativa frustrada de vir a ser algo que em si lembraria alicerce de família.
Certa noite, faz algumas horas, a mãe conteve esse choro mudo ao ver a filha do primeiro casamento pedir que ele parasse de quebrar a porta ou que lhe levasse a vida de uma vez, que morrer seria brando, doce.
Somente os vizinhos devem ter-se arrependidos de morarem tão perto do caos, visto que a mãe cerrou um pedaço de madeira qualquer na calada da noite, entre soluços e cansaço, e com braços de ferro martelou a porta do quarto da filha até que ela parecesse firme o suficiente.
Eu sei, a cena também me comove, às vezes eu poderia jurar que vivo numa novela, que sou personagem de tragédia cinematográfica, eu sei, eu sei, tanto eu sei.
A mãe não sabe que teria de mandá-lo para longe para que isso não tornasse a acontecer, o seu amor. Ela continua martelando a porta, não se pode demovê-la, dissuadi-la, ela permanece com a idéia fixa de que se os dois saíram do mesmo buraco devem se entender, e Jesus nos abençoe a todos, amém.
A filha do primeiro casamento a ama demais, quer só esquecer mais uma cena dessas, e dormir, que dormir por aqui tornou-se coisa rara.
Então juntando os pedaços do quebra-cabeças nesse quarto de mentira, atrás do esforço inútil por sorrir em gratidão, a outra filha secou as lágrimas e recostou-se na cama, cheia de um silêncio estarrecedor.  Permaneceu horas olhando o vazio esbranquiçado do teto, paralizada com horror e depois achou já estar habituada a tudo isso.
Embora não me sentisse segura, como aqui jamais me sentirei, não se falou mais nisso até o amanhecer.

domingo, 20 de junho de 2010

Quando penso na noite de ontem,

fico paralisada por tanta concorrência. Revejo os corpos nessa tela mental e todos me parecem muito mais vorazes, desesperados em sua volúpia. Lembro sem dificuldade dos risos, das curvas que se movem nessa fome implacável por outrem, esperando em seu silêncio que um beijo aconteça como acontece o olhar lascivo de uma noite de sábado. Escolher é que é coisa difícil, quando esse olhar vem de todas as direções.

Ao fim de tudo, sempre escolho errado.

Você vem, faz boca e sorriso, faz corpo com corpo, dança e me faz dançar essa melodia de erotismo. Você olha nos olhos com igual ardor e uma onda de calor inunda os órgãos internos até que a pele do rosto adquira esse tom avermelhado característico. Você acha graça e não acredita que ainda estou me segurando.
Acontece que há coisa que ultrapassa segurar, manter, resistir: depois de várias tentativas você obtém aquilo que deseja, quando por fim meu corpo está febril, você sorri. E me rouba um beijo. Com insistência meus lábios se perdem, imaginam outro alguém, e você sorri. Acredita mesmo que estou ali, que me rendi ao seu encanto.
 Depois você crê, materialmente e sem pudor, que pensarei em você no dia seguinte, que lembrarei cada detalhe dessa madrugada fora de mim, é o que diz a si e aos que estão em volta.
Então o sorriso me ocorre, te digo baixinho no canto do teu ouvido, segurando firme teu corpo junto ao meu para que continues acreditando que és a melhor das possibilidades da noite, digo que se penso em você logo é porque você pensa em mim.

É a lógica intrínseca da vida, o inevitável, meu bem.

quinta-feira, 17 de junho de 2010

Em prosa poética te digo, Gigi


É preciso com muito esforço rir na cara do silêncio, fazer sala e devaneio, sair assim, de soslaio, entre um verbo e outro, para poder me libertar desse pó de coisa amontoada que foi se acumulando entre idas e vindas e depois voltar sem despedidas, dizer está tudo bem, que você saiba, está bem também, cara amiga.
Escrevo para você porque cansei repentinamente de tanto silêncio batido e de desamores nas entrelinhas. Encontrando-me entre as nuvens daquele dia, aquele não muito distante sobressalente de nossa rotina, quando o céu nos era de um vermelho-dourado estarrecedor tornando-me osso do ofício de ser, ver, sentir e fazer ver; sei que o que sobra está nas bordas, pela orla da vida, e nessa praia eu andei nua revestida de testemunhas. Tanto que você é uma delas.
Mas não quero dizer muito. Quero é não precisar explicar nada, porque o que ficou para trás já é como que livro morto, explica-se por si só, reduz-se a si mesmo tal qual é e você o vê. Com essa liberdade toda, você o vê.
Quero é que a minha opinião seja dita, que transpareça em mim essa vontade de momento, não a de ir longe, de parar, de não falar, de não ouvir, não. Quero é intentar nada, inventar a vontade do existir, esta sim, só esta concebível agora. Do resto há o resto, os resquícios amarelecendo-se por longo tempo de exposição à luz dos fatos, as noites mal dormidas, estes todos também senhorezinhos de si. Do resto há ainda o que advém do resto: estas incertezas certas de si, e os sorrisos ousados direcionados aos mesmos protagonistas do teatro dos vivos. Eis que aí me reconforto, é nessa hora mesma que se me escapa um sorriso, quando das tuas redescobertas, conto novas estórias...

quinta-feira, 10 de junho de 2010

de manhãzinha.


A paciência encobriu os olhos de uma sonolência atípica quando o sol se manteve por detrás das nuvens esta manhã. Esperava-se as horas do entardecer quando ainda cedo os pássaros sobrevoaram tímidos as nebulosas lá em cima. As pessoas, era visível em seus olhos, mantinham aquela palavra inaudível presa à língua, preparada para sair de súbito quando o instante lhes ocorresse.
Contudo, os turistas abaixaram o tom da voz, somente o vento foi ouvido no cais. O sol caloroso na memória, mas ainda do porvir não brilhou, esqueceu-se de nós, e depois foi esquecido.
 Segui um grupo de gaivotas à beira do mar, o impulso vital da existência enquanto as ondas tomavam forma que não essa espessa à frente dos olhos crus.

Então o mar. De uma grandeza insondável, assustador. Amplo à linha do horizonte, fiel a esse desenho sublime, comprometido com o infinito acinzentado dessa existência inerte. Não sei que mistérios encerra, não sei aonde se dá por fim vencido, quando já o esqueceram, não sei aonde se entrega, que praias banha em ilhas distantes, não sei. Some, à frente das mãos abertas, some, engrandece à medida em que desaparece do alcance dos olhos, da visão efêmera da consciência, da lógica inefável do conhecimento.
É preciso que eu diga, de uma vez por todas, para enfim aceitar a realidade em que me encontro, que vejo vocês em tudo isso.


sexta-feira, 4 de junho de 2010

Sobre meus esforços por esquecer.

Está ali, diante dos meus olhos, está ali. Existe, permanece, é matéria ao alcance das mãos. Começo a pensar que é inapagável à medida em que insisto em esquecer. Vê, argumenta para que eu veja, respira esse ar gelado que invade nossos pulmões. Diz é difícil. Ainda negligencia? Esforço-me para ouvir ao passo que mantenho os olhos afastados para não gerar confusão na mesa. Digo isso, sim, é difícil.
Está também aqui, logo em frente, sobre a cama, nas paredes, onde houve meu toque sobre a superfície das coisas no quarto, onde deixei sem o querer o magnetismo desse meu ser que vive, os pensamentos que compõe a vida além da vida, acerca da vida.
Homens estrangeiros em cidades distantes, mulheres ainda moças a passear em praças de assexualidade, com tanta candura na cama, a minha vontade está longe de terminar esta noite. Sufoco, apago vestígios, descubro que memórias são inapagáveis mesmo com tanto ardor por esquecer. Depois acendo cigarros, sobretudo escrevo, caminho, escrevo novamente. Aos poucos esqueço, volto a lembrar.
Esses amantes me matam, pouco a pouco, com o desejo além do desejo, a vontade inominável que se estende além da morte. Poder-se-ia dizer que é o inevitável, este tipo de desfecho batido, e mesmo assim eu me veria presa à estas paixões terrestres, submetida a elas com esse mesmo livre arbítrio pulsante, a regalia que deuses épicos nos concederam em sua benevolência.
Entretanto essa regalia de os apagar, um a um, os amantes que me tomam em manhãs azuis, inexiste.

quarta-feira, 26 de maio de 2010

O som do tamborilar dos dedos.

O vento. Ainda nos cabelos dela, demora-se. Uma hora ou outra o sono virá. Transportará este corpo cansado pendendo na janela para o aconchego dos sonhos imateriais, resultará no enternecimento de que nada mais é esperado além disso e pronto: assim tal qual é, vê-se essa mulher na janela, pede-se que permaneça, que mantenha a postura, essa dádiva que é para o desenho, até mesmo a pintura. Pede-se, ordena-se que fique ali parada, altiva e contraditoriamente decadente, enquanto o pêndulo da indecisão de que lhe queiram tanto bem rouba-lhe a cor das faces. Ela não sabe, em sua insônia ela negligencia, essa casualidade em obra divina que representa, ela negligencia absolutamente.

Digo-lho ao vento. Porque ela é esquecida de si mesma, digo baixinho e estremeço por causa da intensidade que me atravessa. Faço parte dessa mulher, faço parte inteira e incompleta, também eu sou o vento nos seus cabelos, a providência divina. É como se ela me dissesse, o tempo todo, é como se usasse esse silêncio para comunicar-se comigo, eu que sou sua anima. Fica ali imóvel, vê mas não enxerga, olha levianamente para fora por motivos que também ela, em parte, os desconhece. Se lhe perguntassem se é por causa de um amor, sim, é por causa desse amor, por causa de sua partida, por causa também das palavras rudes ditas por ele? sim, e o esquecimento. Também isso, o esquecimento.
Vejo que agora já o sono lhe abate, já lhe espreita algo maior que esse silêncio ou a própria loucura. Ali, sob as pálpebras cansadas, ela denota sinais dessa derrota, esse cansaço originário de uma longa espera, a pele fresca e pálida por demorar-se no equívoco.
À parte, nada lhe ocorre que infrinja essa lei pessoal, tampouco que ultrapasse a necessidade da espera que inventou para si mesma. Não se pode pedir-lhe mais nada, nem que pare nem que prossiga com essa violência contida, o ato da espera, o suplício de se repetir, mas não é de todo verdade, deve-se exigir-lhe com direito que mantenha o olhar brutal que me invade feito o crepúsculo nas noites de inverno, sempre a genialidade do acaso. Pronto, exige-se, é permitido. Isso pode, ela diria se pudesse, isso e nada mais. Portanto talvez eu rompa o silêncio, talvez, o bastante para sempre.

- Por que tanta tristeza esta noite, Margaret?
- Esta noite, como em qualquer outra. – Ela dá de ombros, responde ainda questionando se quem fala pertence a si mesma: - Creio que são as flores... digo, a ausência delas, das cores.
- As mudanças de estação a deprimem, é verdade.
- Não é isso.
- Seja como for, o inverno também acaba.
- Para você sempre é fácil dizer.
- E isso por quê?
- Você é seu pequeno sol.

terça-feira, 18 de maio de 2010

de sonhos e pesadelos.



Quando amanhece, essa luz entrecortada pelas construções inacabadas ilumina este rosto diante do espelho. O movimento inexiste no quarto, a sobriedade é alcançada através dessa verdade congelada no filme de minha vida.
O quarto, submetido nesse caos em construção, o corpo que não se move, intacto, permanece. Lá fora, através das arestas, o crime é um fato. No mundo dos coadjuvantes, o desdém dos apaixonados, as casas por sobre as casas, o povo faminto desse lugarejo miserável é como um crime, como a morte que permanece.
Você permanece também como parte de uma lucidez intacta na memória dos meus dias. Mantém-se paralisado enquanto a fotografia acontece, intocável. Você acende um cigarro, palavras se constroem diante dos olhos e morrem pisoteadas por pquenas incertezas.
É porque preciso romper esta perfeição que lhe falo a primeira vez, digo para que abandone, esqueça dos silêncios destas paredes opressivas ou que então esqueça essa estória de amor. Você não me vê, você está absorvido como que por integridade, essa lealdade que reserva para si próprio. É porque você está entregue ao mesmo silêncio, porque simplesmente está entregue, que o instante nos acontece. É esse o momento de decidir o que fazer com o que foi feito ou não. Deixa-lo para que se torne ou deixe de se tornar parte importante no mundo das significações. Aos poucos você atinge esta perfeição de não saber nada, de não intentar sabe-lo. Você não me olha, diz:
- Com você, o que houve?
As palavras, como lhe caem bem, ditas por você têm maior peso. Respondo que foi isso, que é isso, esse silêncio soturno, esse vazio, foi isso que me despertou para essa vida paralela à sua, por causa do que você diz sem mover os lábios quando não os move, quando mantém esse olhar distante, evasivo. Digo que é culpa sua, explico.
Então você sorri quando me daria o contrário, você sorri, dá de ombros. Mesmo você já me esqueceu.

quarta-feira, 12 de maio de 2010

Ainda que eu encontrasse palavras para dizer,

agora atravessa estas ruas um silêncio perturbador, imensurável.
A imobilidade do feriado se apossou das avenidas, submergiu a cidade no que há de mais brutal no mar do esquecimento. É como se, de súbito, os passos tivessem resolvido desabitar o mundo dos asfaltos. Nem mesmo um carro ou um ambulante solitário. Ninguém nesse direito de ir e vir. Ninguém em dobras de esquinas, em praças verdejantes, muradas que cercam prédios, nunca. Ninguém, nunca.

Pode-se apalpar o vazio nítido das vitrines das lojas fechadas, o teatro mudo, a beira-rio intacta, sobretudo a margem do rio, esse silêncio que flui numa torrente intransponível.
Somente o vento, leve e impessoal, preenche o campo de visão dessa cena. Faz isto por meios quase implícitos, através dos vestígios do outono que ficaram pelo chão.
Vejo que a mobilidade tem certa urgência em acontecer, que mesmo agora é possível prever os movimentos subseqüentes de um dia de mudez absoluta, que o verbo que não é dito nas ruas é suscetível ao próprio silêncio, que desprende-se dos telhados das casas essa luz feita de palavras inatingíveis, ao ponto em que o silêncio torna-se uma nota na música da vida e mais nada.
Esta pausa eu a reconheço, esta pausa. É em mim o motivo para sair sozinha, para desencadear buscas imaginárias de idas sem voltas em torno dos mesmos caminhos de sempre. Esse silêncio vem muito mais de mim do que das ruas, despenca das pálpebras cansadas, percorre toda a extensão da boca, dissolve-se sob o azul do céu e esmaga esse dia inalcançável através da umidade dos olhos. Esse silêncio eu o reconheço quando me olho no espelho, esse silêncio sou eu, subjugada por ele, é o que me tornei a partir dele, e por causa disso tornei-me aquilo que escrevo.

quinta-feira, 29 de abril de 2010

Falsos Cognatos.



Você está começando a pensar que mente bem, por isso engana a si mesma repetidamente.
Você contracena dentro da própria peça e fala consigo como se decorasse um discurso lógico, sem absolutamente nenhuma necessidade. Você crê que está sorrindo me pedindo pra ficar, me serve de boas maneiras, diz que tudo é sempre começo.
Você então começa a crer que também somos iguais, que é tudo tão óbvio, que não se conta tempo para deixar para trás qualquer motivo de desentendimento repentino.
E você disfarça, diz que vai casar, inventa amores por causa das estórias impossíveis que lhe atraem tão bem.
Depois você também começa a pensar que pode me devolver isso de alguma forma, mas não conta com o que vai ficando pelo caminho por causa do que parece mas não é.
Diz pra eu não inventar uma estória trágica que não nos cabe e me assegura de que nem tudo que é escrito é verdade absoluta, então repete tudo isso para você-sabe-quem.
Quando você fala ao telefone, ouço duas, três versões da mesma obviedade de sempre. Enxergo que não sei quem és, que acima de tudo não quero estar perdida entre ilusões minhas a seu respeito, conforme você também me assegura.
Sei que entre nós, não sou eu que minto que te amo, não sou eu quem fala da boca pra fora, que por mais que eu me esforce, não sou eu quem vai embora no fim da noite.

segunda-feira, 26 de abril de 2010

Anestesia Literal.



Hoje a confusão tomou conta do manicômio. Quando a enfermeira trouxe as drogas do cotidiano dispostas na bandeja azul, olhou-me com ar estranho e instintivamente cuidei para que aquela convicção não gerasse motivo de alerta em mim. Mas deixar de tomar a anestesia não evitou que eu fosse incluída na algazarra inesperada, muito do contrário, fui levada pela urgência da ocorrência como se fosse alvo fácil.
Jack, o garoto dos ombros caídos, dos cabelos ensebados, do andar coxo, cortou os pulsos esta manhã. Uma longa extensão da sala foi preenchida pelo sangue venoso de Jack. Olhei com horror e estupefação para os loucos que gritavam desesperados enquanto andavam em círculos na sala pequena. Foi preciso mais que força de vontade para me manter ereta diante de toda aquela torrente indescritível de sangue e barulho humano.
Quando enfim consegui caber em mim, ajudei Jack estancando os cortes abertos de onde jorrava sangue e dor em profusão. Evitei contaminar-me com os vermelhos ali expostos, mas ao fim de tudo a tontura me alcançou com verdadeira agressividade. A enfermeira irrompeu na sala acompanhada, tinha os cabelos envoltos na adrenalina do instante, por isso estavam como que esvoaçados. Balançou a cabeça diante de minha impotência e ao seu comando fui posta de lado por mãos masculinas muito perspicazes. Não me lembro dos instantes posteriores, tudo está tomado por uma tela branca intransponível.
Só no início da noite ouvi vozes de calmaria, quando já estava tomada pelas mesmas drogas que havia recusado de manhã, então adormeci com o sorriso zombeteiro da enfermeira na cabeça...

sábado, 24 de abril de 2010

verbos pequenos.


Quando minhas palavras te alcançarem, terás o mundo inteiro desabando à frente e qualquer motivo que tenha ficado para trás enquanto nos olhávamos será trazido à tona bem a tempo de você fechar os olhos e balançar a cabeça em negação. Enquanto você precisa ir longe para captar o óbvio das coisas, enquanto você vê mas não enxerga estremeço na curva do caminho esperando que o caos se livre logo de mim nas avenidas, para que minha imagem seja a foto desbotada sobre a mesa, pedindo para ser rasgada a qualquer custo. Quando eu tiver de deixar você ir enquanto já está indo, tudo não passará de um sonho, de um beijo dado no silêncio da noite. Por que não se pode falar de amor comigo, porque não permito que se fale de amor sem ter certeza que isso vai além do alcance das palavras...

quarta-feira, 21 de abril de 2010

"quebre a cabeça..."




A menina do anel procurou quem encontrar em bares da cidade, buscou mais motivos para fumar mais uma carteira de marlboro vermelho, ajeitou o cabelo e vestiu-se de roupa nova. Pegou seu skate e sorriu diante dos tombos inúmeros que vida dá sobre quatro rodinhas singelas.
Depois se reuniu com pessoas estranhas, dançou com gente esquisita, falou de física quântica nas escadas da cidade como quem fala de um poema predileto enquanto tocavam suas canções favoritas no violão.
Sentou-se à beira do lago, olhou para o céu noturno no parque e quis deitar-se sobre a grama para lembrar-se de como é ter a leveza no corpo num dia de feriado.
À essa altura de tanto ser, a única coisa que desencaixou do quebra-cabeças da vida foi lhe ser conhecido que alguém está para ir embora, alguém que para ela valeu cada segundo desses meses mais recentes, até mesmo quando era para não valer nada. Esse foi o único motivo que encontrou para não dormir sorrindo e para morrer de medo naquela noite.

sábado, 17 de abril de 2010

Por um instante, mãe,

sim, por um instante acreditei poder viver nessa paz solitária por longo tempo, onde ter de buscar na solidez muda das paredes brancas companhia que não as lembranças amontoadas fosse motivo suficiente para começar uma manhã mergulhada nessa paz insana. Depois de desarrumar os armários arranjei desculpa pra me sentir eu construindo aquela cena; e mudar os móveis de lugar nessa busca da casa personificada só me fez encontrar tua voz tremendo na porta de entrada. Assim já vejo que meu refúgio flutuante está condenado a inexistência enquanto tomo mais um calmante e deixo o corpo pesar na cadeira.
Não é segredo que eu não goste de quem trazes contigo, que não resta lugar na minha alma que sirva de quarto-de-bagunças, que a qualquer instante, podendo ser agora ou daqui a um mês, carregarei comigo quem eu sou mundo afora, e que apesar de ter a liberdade entre as mãos e a vontade nos olhos da cara, ainda faria o mesmo se essa casa que ergui nesses meses todos fosse inteiramente minha.

segunda-feira, 12 de abril de 2010

two



Poderia descrever agora a sensação que tenho entre os olhos da cara, essa neblina que inunda meu ser nessa manhã ensolarada e transborda a existência incerta de dois corpos perdidos no mundo das ilusões flutuantes. Mas o mar encharcou meu corpo, o mar intenso e sem forma ocupa a cena dessa fotografia. Tudo agora poderia ter começado com essa fotografia dos amigos sentados na orla da praia, porque sinto como se estivesse contando os instantes da manhã que começa enquanto vou existindo...


- Deixa a música das ondas tomar lugar no firmamento, leva teu corpo no embalo da maré mas não mergulha nesse mar insensato de estar comigo, porque essa grandeza te devora, meu amigo. Escolhe o que levar de mim para sempre contigo, que esse pedaço há muito te pertence. Guarda esses intervalos de silêncio como a mais duradoura conversação existente entre nós e não te esqueças das horas subseqüentes porque compartilhar contigo meus sorrisos de abril, enquanto essa eternidade nos sucede mansa e irrevogável, só faz gerar motivo para não querer mais nada esta manhã e ser feliz de ter isto.

quarta-feira, 7 de abril de 2010

Hoje não.

Cansei de tanto procurar
Cansei de não achar
Cansei de tanto encontrar
Cansei de me perder

Hoje eu quero somente esquecer
Quero o corpo sem qualquer querer
Tenhos os olhos tão cansados de te ver
Na memória, no sonho e em vão

Não sei pra onde vou
Não sei
Se vou ou vou ficar
Pensei, não quero mais pensar
Cansei de esperar
Agora nem sei mais o que querer
E a noite não tarda a nascer
Descansa coração e bate em paz

[Composição: Simons & Marques / Alberto Ribeiro]

domingo, 21 de março de 2010

Foi em abril?



...quase não me lembro, mas não consigo esquecer de todo. E tu te lembras? Vinhas pela via da direita, eu estremeço à imagem nítida dessa lembrança, vacilo à menor palpitação daquele olhar em plena luz do entardecer quando eu segurava firme o livro que te chamou pelo nome. É como se fosse ontem. Sim, agora me lembro bem. Os teus cabelos eram ainda escuros, caiam ondulados por sobre os ombros e senti a onda de calor tomar meu rosto instantaneamente quando ao meu pensamento teu olhar seguiu minha direção.
A voz. Ainda me lembro da voz, veio quebrando o silêncio daquele tempo, veio sorrindo de corpo inteiro para dizer olá, quem vem por aí, menina do anel? e o perfume, é claro, o perfume que me ocupava noites à janela, sempre entrando sem pedir licença através das muitas cartas que trocávamos insaciáveis.
Não existe método maior que a saudade para ressaltar a importância que exercemos uma à outra naqueles velhos tempos, o lance das mãos tímidas, os olhares vagos, os risos incontidos e as palavras reticentes...
Ouso dizer que não é de todo mal que hoje eu quase não te veja, pois para tudo há esse tempo, esse deslumbramento que precede paixões arrebatadoras de finais de tarde ensolarados, e para tudo há também esse desfecho igualmente violento.
Ainda que não perdure além dos dias contados nos dedos, ainda que não estejas aqui presente no momento do agora, eu sei que continuas sendo, lá no fundo das minhas razões temperamentais, a melhor das noites de inverno, o melhor tempo-longe-de-mim, o melhor desencaixe e a melhor juro de amor feita na estação. Ainda que não tenhamos passado além desse platonismo arrebatador, sinto que vivemos histórias de mil anos em poucas noites de calmaria e viveríamos mais se quiséssemos ter vivido, mesmo em meio ao turbilhão de sentimentos confusos dentro dessa réplica reduzida de nossos dias compartilhados.
No final, creio ser isto o que conta. Não perderia meu tempo dizendo isso às tempestivas ondas do mar se não soubesse que, silenciosa em teu quarto, podes bem ouvir e sentir o calor das minhas petições...

terça-feira, 16 de março de 2010

É de novo o mesmo céu

sobre nossas mentes despertas enquanto vou decidindo o que fazer com o que ficou pelos cantos da casa. Não seria preciso mais que um dia ao teu lado para me apaixonar de novo, e você diz que estou carente como se esse fosse o único motivo existencial entre nós; depois libera esse sorriso cheio de paciência e me diz relaxa. Não, não dizes nada, é só um sonho tolo do verão que se acaba.
Tudo o que eu sei está aí e não seria preciso tampouco colecionar as cartas que nunca envias, os vãos que vamos deixando entre um olhar e outro para sabermos que ali o acaso focou um pouco de nós a cada passo dado na estrada da vida, fazendo a fotografia que não existiu, mas que perpetua na minha retina ocular.
É essa dança muda entre os corpos que se distanciam por falta de alguma coisa que ainda não sabem explicar, essa luta muda travada por dentro dias a fio e os flagelos remascentes do nosso contato de meses insensatos, que vai me preenchendo palavra por palavra até o ato da respiração. As mãos não foram dadas, mas é tão intenso que me sinto desmembrada quando tens que ir.
Terias qualquer nome se eu pudesse ser além de quem eu sou quando estou longe d eti, e ainda assim não me canso de esparramar meus gestos ao vento, nessa necessidade explosiva de ver tudo o que eu não vi ao teu lado.
Assim ficam as palavras mudas nos lábios que já beijaste e que por uma vida inteira seriam teus se quisesses.