terça-feira, 26 de maio de 2015

Cântico Negro

"Vem por aqui" — dizem-me alguns com os olhos doces
Estendendo-me os braços, e seguros
De que seria bom que eu os ouvisse
Quando me dizem: "vem por aqui!"
Eu olho-os com olhos lassos,
(Há, nos olhos meus, ironias e cansaços)
E cruzo os braços,
E nunca vou por ali...
A minha glória é esta:
Criar desumanidades!
Não acompanhar ninguém.
— Que eu vivo com o mesmo sem-vontade
Com que rasguei o ventre à minha mãe
Não, não vou por aí! Só vou por onde
Me levam meus próprios passos...
Se ao que busco saber nenhum de vós responde
Por que me repetis: "vem por aqui!"?

Prefiro escorregar nos becos lamacentos,
Redemoinhar aos ventos,
Como farrapos, arrastar os pés sangrentos,
A ir por aí...
Se vim ao mundo, foi
Só para desflorar florestas virgens,
E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!
O mais que faço não vale nada.

Como, pois, sereis vós
Que me dareis impulsos, ferramentas e coragem
Para eu derrubar os meus obstáculos?...
Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós,
E vós amais o que é fácil!
Eu amo o Longe e a Miragem,
Amo os abismos, as torrentes, os desertos...

Ide! Tendes estradas,
Tendes jardins, tendes canteiros,
Tendes pátria, tendes tetos,
E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios...
Eu tenho a minha Loucura !
Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura,
E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios...
Deus e o Diabo é que guiam, mais ninguém!
Todos tiveram pai, todos tiveram mãe;
Mas eu, que nunca principio nem acabo,
Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.

Ah, que ninguém me dê piedosas intenções,
Ninguém me peça definições!
Ninguém me diga: "vem por aqui"!
A minha vida é um vendaval que se soltou,
É uma onda que se alevantou,
É um átomo a mais que se animou...
Não sei por onde vou,
Não sei para onde vou
Sei que não vou por aí!"


Compositor: José Régio

quarta-feira, 6 de maio de 2015

Ana Karina Martins




Você passou por tanto em tão pouco. Fez importância a tanta gente, constituiu parte do meu ser, o que sou, o que nossos amigos em comum são e também a toda essa gente que não conheci mas que você igualmente tocou. Suas lutas, suas disputas, suas amarguras e amores, cheiros e sabores. Deu a volta por cima, sossegue mesmo.

A deusa lhe aconchegue, o deus a guarde, os pássaros musicalizem a sua partida, o vento ressoe em seus cabelos para que seu perfume se espalhe por todas as dimensões e a saudade seja ato involuntário sempre positivo, os seus a recebam de braços abertos, as nossas lágrimas cristalizem para refletir o seu inverno mais azul. Vai com deus, vai em paz, meu amor, vai com os seres encantados da floresta, com os anjos, vai com amor. Com amor.

Assim seja.
Até logo.

+ 4/05/2015 - segunda-feira

sábado, 2 de maio de 2015

Carta a você.


Tive uma vontade enorme de te chamar para um reencontro. Sentar na praça contigo, esbanjar sorrisos enquanto os dedos das mãos se movem tímidos. Poderia ser uma mesa de bar. Um café para mim, uma Heineken para ela, por favor garçom – e frases do tipo.
Sentar à margem do rio já bastaria. Poderíamos conversar por horas ou olhar-nos por alguns minutos e permanecer em silêncio nos momentos subsequentes. Pouco importaria se choveria no dia seguinte, quem quer saber do tempo é porque se perdeu entre um verbo e outro e isso não nos cabe de nenhuma maneira. Ao menos nunca nos coube.
Queria mesmo saber quem é você e por onde anda. O que tem feito de sua vida. Poderia contar um bocado da minha, caso você desejasse.

A verdade é que essa vontade lateja em mim há bastante tempo. Isso porque mudei a ótica do amor que dizíamos sentir. Mudei muitas coisas, aliás. Outras conjeturas me ocupam a mente, confesso, mas retomar a algumas perguntas não respondidas me traria clareza aos dias atuais – para parar de amontoar dúvidas e libertar a vida disso. Pensei também no seu lado, será que não lhe faz falta alguma a ausência de porquês? Não para retomar qualquer coisa – não, nada disso. Mas para limpar esse amontoado de perguntas que empurramos aos cantos da vida.

Eu não tenho mais o seu telefone. Tampouco e-mail. Há um, é verdade, mas creio que você não responde mais nele.
Se algum dia você vir aqui e ler isto, e intuir que é para você, por favor me chama em off. Deixe seu telefone. Pode deixar uma nota ou até uma flor na minha varanda. Na janela, sabemos, você jamais viria. Mas sem muito: apenas você e suas desculpas conhecidas. Já é tudo ensaiado, tudo esperado.

Apenas o que não se espera é que você reconheça nisso um convite. Por isso esclareço: é.