quinta-feira, 19 de março de 2020

um ano de solitude


Em março as pessoas se assombram com a quarentena imposta por um vírus de origem asiática, sem contudo saber que a cólera não tem a cor que não a própria de seus reflexos. Olho-me no espelho e relembro, vivendo ainda sob a carne, as marcas do tempo. Minha quarentena não faz somente os dias aí exigidos pelos governantes do mundo.

A verdade é que assentei minha alma sobre este corpo há exatos trezentos e sessenta e cinco dias.

Separei-o do mundo então: nada a dar a quem nada pode compreender a magnitude desta essência que se encontrou a si. Nenhum suposto amor, nenhuma troca de libido terrena pode me alcançar em altura tal qual a esta que estabeleceu-se entre mim e meu ser.

Decidi outrora com olhos racionais, ponderei, como juiz de mim, que me manteria fora do mundo por saber-me tão graciosa e paradoxalmente invisível nele.

Passeei por longos desertos, acumulei poeira.
Embora no início julgava difícil estabelecer essa relação de amor comigo mesma, fui ao encontro deste ser que em mim habita e obliterei compartilhar essa relação com qualquer outro alguém.
Ficamos então, eu e eu mesma nesse espaço de tempo, sem relação com o espaço em si, mas com o tempo que eu divisava distante, querendo expurgar toda a carga anterior do mundo.

Por um tempo tateei no escuro ou era sob o mérito de uma luz tão vibrante que sequer poderia enxergar a mim mesma. Rendi-me então no branco leitoso da existência.

Vieram três, talvez quatro pobres almas a percorrer o entorno do meu deserto. Deixei-as cair nas próprias conclusões e pedi que a linha suntuosa do tempo lhes retirasse do meu caminho.
Pode ser que levantei a voz para as mais persistentes, disse-lhes saiam agora e não retornem. Demarquei as saídas, as palavras, as estórias. Tudo para não deixar nenhum mal entendido e não cometer injustiças.
Depois titubeei, é verdade, estava também eu um tanto cega com essa luz. Mas não retrocedi.
Segui fitando o branco que me engolia hipnotizante.

Até que fui deixada em paz. Na falta de encontrar alguém à altura, encontrei a minha própria mão, corpo sereno a me vestir. Vesti-me de sua solicitude e me entreguei.

Não é por nada que passam-se os dias da quarentena de março como passam-se normais os meus dias. Só mais um, como qualquer outro. Aqui, do alto de onde observo o mundo a dar as suas voltas, resta-me apenas respirar. O meu espírito se acomodou ao corpo e não deseja se entregar aos que estão cegos de mim.

Foi o ano mais revelador de minha vida e ainda assim, continuo higienizando as lembranças por esses dias. Deixei meu corpo então suar, expelir os seus odores sagrados. Aos poucos sinto que rompo as membranas adjacentes, vibrante e maciça e completamente rendida à força de ser quem sou.