domingo, 26 de maio de 2019

não disse o que queria dizer e a verdade é que não tenho nada a lhe dizer, Caroline.


Poucas coisas na vida me são verdadeiramente broxantes. Deixe-me reformular, eu sei das injustiças, da sujeira, do crime de colarinho branco, dos imundos hipócritas que hoje, exatamente hoje para não mentir, foram às ruas bradar apoio ao seu capitão - igualmente sujo e hipócrita, vale ressaltar. Estas coisas me são broxantes por demais. Não há dúvida.
Mas o que quero dizer, devo dizer, se é que posso explicar: poucas coisas me são broxantes diretamente, além do fato de se nutrir afeto por político de estimação. Explico de novo para que você me entenda: estas coisas - as sujeiras do mundo - são do mundo e ainda que não tenha existido um pai em minha vida ou sequer um resquício de fortuna, herança ou qualquer facilidade - muito do contrário, só agressões em famílias, boletins de ocorrência contra irmão por um olho fechado na porrada que me dói na alma até hoje, abandono de segundo casamento maternal, traição e agressões de anos de padrasto e silêncio cúmplice de família machista e ou desinformada à época - ainda assim me considero muito sortuda por estar distante de boa parte das sujeiras mundanas. Mas este texto não é sobre a minha vida.

Quero dizer, eu não preciso comer nada que já tenha ido ao lixo, não busco meu sustento em prostíbulos - e não há nenhum demérito nisso que escrevo, apenas sorte - não durmo e acordo na rua nem morro de frio abandonada em pleno inverno. Não, não. O que me é broxante é algo que me rodeia, eu que tenho muitos privilégios e não posso deixar de reconhecê-los por essa pequena parte que relatei nas linhas de cima. Sim, privilegiada. Ainda assim, nessa vidinha mediana - de novo sem desrespeito à vida, mas por reconhecimento da dificuldade alheias, medíocre então apenas por estar na média catarinense - nada mais que isso - deixo-me broxar por poucas coisas que habitam esse pequeno mundo.

Não carece de tanta explicação, mas se não me manifestasse prolixa não seria eu.
O que quero dizer, deixe-me começar de novo, nesse imbróglio, é que poucas coisas me são broxantes e realmente você assumiu o posto. Mas entenda que esse texto não é sobre você, nem sobre mero desabafo - isso porque jurei silenciosa e para mim mesma na intimidade do meu ser que não escreveria uma linha a quem não merece sequer uma palavra. Não, não. Esse texto não é exatamente sobre você, embora cá as circunstâncias da datilografia me levem a me deitar novamente sobre o que foi a sua passagem em minha existência.

Esse texto é sobre palavras e encontros de estranhos, é sobre esse termo individualmente confuso e socialmente cortejado, atrelado à boa parte de relações superficiais mantidas por, concorde comigo, trejeitos socioculturais... esse olá, tudo bem? Essa mania incontrolável de "fazer contato", ser educado - mesmo quando não se almeja verdadeiramente -, mas por puro trato social, porque assim jogam as regras no tabuleiro humano e nós - peões que somos, porque todos são peões em algum momento, nem que seja na hora da morte - nos debruçamos cheios de árdua formalidade, maquiagem quase maquiavélica e funcional para nos dizer - a voz medíocre como todo o resto - "olá, como vai" sem sequer intencionarmos saber como vai o outro, de fato. Não há sequer temor por uma pergunta que já conhecemos previamente a resposta: "tudo bem e você?". Em alguns casos haverá, no máximo, "obrigado por perguntar", entre os mais aperfeiçoados da arte, no seu caso dissimulado - permita-me acrescentar. E você ousou me destinar estas palavras. Você fez isso, não bastasse tudo o que já havia feito - ousou cometer crime maior que é a declaração de que permaneceremos seres estranhos, avessos, indiferentes. Como se nunca houvéssemos nos olhado e tocado fervorosamente, alma contra alma, sua boca na minha, a língua e a carne úmidas em uníssono. Como se você não me dissesse, a contragosto, três anos depois que tudo o que vivemos foi uma mentira. As dificuldades que enfrentamos, para suprir um papel que você criou para não precisar me apresentar à sua família em um teatro ao qual eu me submeti com você, como mera coadjuvante, tão à mercê, ingênua e doente de ilusão. Não é possível - ou melhor, é sim, quando me lembro do trajeto dessa história e do seu papel de boa atriz - porém me é de direito exclamar que não é possível que até esse crime você tenha cometido!

Tal foi a minha surpresa - não apenas pelo encontro inesperado, mas pelas suas palavras - pense em um broxar rompante - como uma verdadeira e inesperada chuva de verão mas sem a parte nostálgica das infâncias sorridentes - pense que para tal flecha sorrateira em meu peito apenas consegui murmurar "bom dia".
Foi a maldita da educação que recebi de casa, gostaria de dizer que foi de minha mãe, talvez tenha sido, mas só consigo lembrar de minha 'vódrasta' muito generala - esposa de militar - a dar toda a 'boa educação' na base de tapas, puxões de cabelo e olho ardente. Foi essa maldita conduta social imposta em regime ditatorial que me fez responder tão injustamente àquela flecha em meu peito.

Quando dei por mim, da injustiça que havia cometido comigo mesma por responder-lhe "bom dia", os olhos torcidos de verdadeira dor, imaginei mil outros encontros e mil outras respostas. Certeza de que nenhuma delas agradaria a você, mas seria um alívio vomitar toda essa náusea que sinto de quando vejo você dispor a outra pessoa tudo aquilo que me negou um dia, com todas as escusas e falas ensaiadas. Casamento na cidade alemã, passear com cachorro no parque, jantares românticos à noite e toda sorte de programa de verdadeiros namorados... vomitarei, por certo, antes de findar esse texto que também não tem a pretensão, absolutamente, de ser sobre você, volto a repetir.

Repassei novamente em minha tela mental as discussões que criei para me abrir com um ser que jamais esboçou ou esboçará um pedido sincero de desculpas - porque você simplesmente não se importa - e não quero me fazer de magoada por aqui tardiamente. Eu tive um relacionamento abusivo, com uma figura completamente tóxica e manipuladora sem me dar conta disso e hoje me equilibro em meus porquês para amenizar minha sensação de culpa. Não, já se passou dois anos e não será agora que despejarei qualquer coisa sobre esse incidente que foi você em minha vida, tão visceral, falsa e imoral e vários outros adjetivos que deixo-a livre para completar.

Não gosto de me demorar num texto que é sem amor e ainda em tom de broxe, mas não era bom dia que você merecia ouvir, não. Não. Penso que a resposta mais sincera e sensata seria: nenhuma.
Não tenho verdadeiramente dentro de mim nada que valha alguma coisa para você, não tenho mais nada a lhe dizer a não ser tudo o que aí está e permanecerá no tempo como mais um dos rompantes amargos da vida e a cruel sensação de que seremos eternas estranhas, angustiando toda a má sorte de um reencontro.