sexta-feira, 25 de junho de 2010

O amor da vida de minha mãe

é o seu filho mais novo, que já atingiu a maioridade. A esse amor ela protege com a vida. A esse amor ela banca, paga seus cigarros, suas dívidas, a droga que consome, as garrafas de bebida. O amor de minha mãe grita, agride, perturba a vida dessa filha que ela deixou a um canto porque tudo nessa filha lhe lembra um casamento mal sucedido. Ele a furta, leva embora suas coisas com essa facilidade brutal, esse talento que tem para  o mal. Ele também a agride, é verdade, mas isso não se conta a ninguém.
A mãe não vê, essas coisas, a mãe ignora. A vida da sua filha primeira está bem aí, entre os escombros que sobraram das agressões e os sorrisos que inventa para acreditar que a vida é lá muito boa pra se pensar nisso aqui.
Não é verdade que existam dois lugares nessa casa para os dois filhos de minha mãe, não existe. Se existia terminou-se por vir abaixo, quando esse amor de minha mãe espancou a porta até ela quebrar-se por inteiro. O quarto também, confesso a contragosto, é quase uma ilusão de tanto que teima em existir. É uma tentativa frustrada de vir a ser algo que em si lembraria alicerce de família.
Certa noite, faz algumas horas, a mãe conteve esse choro mudo ao ver a filha do primeiro casamento pedir que ele parasse de quebrar a porta ou que lhe levasse a vida de uma vez, que morrer seria brando, doce.
Somente os vizinhos devem ter-se arrependidos de morarem tão perto do caos, visto que a mãe cerrou um pedaço de madeira qualquer na calada da noite, entre soluços e cansaço, e com braços de ferro martelou a porta do quarto da filha até que ela parecesse firme o suficiente.
Eu sei, a cena também me comove, às vezes eu poderia jurar que vivo numa novela, que sou personagem de tragédia cinematográfica, eu sei, eu sei, tanto eu sei.
A mãe não sabe que teria de mandá-lo para longe para que isso não tornasse a acontecer, o seu amor. Ela continua martelando a porta, não se pode demovê-la, dissuadi-la, ela permanece com a idéia fixa de que se os dois saíram do mesmo buraco devem se entender, e Jesus nos abençoe a todos, amém.
A filha do primeiro casamento a ama demais, quer só esquecer mais uma cena dessas, e dormir, que dormir por aqui tornou-se coisa rara.
Então juntando os pedaços do quebra-cabeças nesse quarto de mentira, atrás do esforço inútil por sorrir em gratidão, a outra filha secou as lágrimas e recostou-se na cama, cheia de um silêncio estarrecedor.  Permaneceu horas olhando o vazio esbranquiçado do teto, paralizada com horror e depois achou já estar habituada a tudo isso.
Embora não me sentisse segura, como aqui jamais me sentirei, não se falou mais nisso até o amanhecer.

domingo, 20 de junho de 2010

Quando penso na noite de ontem,

fico paralisada por tanta concorrência. Revejo os corpos nessa tela mental e todos me parecem muito mais vorazes, desesperados em sua volúpia. Lembro sem dificuldade dos risos, das curvas que se movem nessa fome implacável por outrem, esperando em seu silêncio que um beijo aconteça como acontece o olhar lascivo de uma noite de sábado. Escolher é que é coisa difícil, quando esse olhar vem de todas as direções.

Ao fim de tudo, sempre escolho errado.

Você vem, faz boca e sorriso, faz corpo com corpo, dança e me faz dançar essa melodia de erotismo. Você olha nos olhos com igual ardor e uma onda de calor inunda os órgãos internos até que a pele do rosto adquira esse tom avermelhado característico. Você acha graça e não acredita que ainda estou me segurando.
Acontece que há coisa que ultrapassa segurar, manter, resistir: depois de várias tentativas você obtém aquilo que deseja, quando por fim meu corpo está febril, você sorri. E me rouba um beijo. Com insistência meus lábios se perdem, imaginam outro alguém, e você sorri. Acredita mesmo que estou ali, que me rendi ao seu encanto.
 Depois você crê, materialmente e sem pudor, que pensarei em você no dia seguinte, que lembrarei cada detalhe dessa madrugada fora de mim, é o que diz a si e aos que estão em volta.
Então o sorriso me ocorre, te digo baixinho no canto do teu ouvido, segurando firme teu corpo junto ao meu para que continues acreditando que és a melhor das possibilidades da noite, digo que se penso em você logo é porque você pensa em mim.

É a lógica intrínseca da vida, o inevitável, meu bem.

quinta-feira, 17 de junho de 2010

Em prosa poética te digo, Gigi


É preciso com muito esforço rir na cara do silêncio, fazer sala e devaneio, sair assim, de soslaio, entre um verbo e outro, para poder me libertar desse pó de coisa amontoada que foi se acumulando entre idas e vindas e depois voltar sem despedidas, dizer está tudo bem, que você saiba, está bem também, cara amiga.
Escrevo para você porque cansei repentinamente de tanto silêncio batido e de desamores nas entrelinhas. Encontrando-me entre as nuvens daquele dia, aquele não muito distante sobressalente de nossa rotina, quando o céu nos era de um vermelho-dourado estarrecedor tornando-me osso do ofício de ser, ver, sentir e fazer ver; sei que o que sobra está nas bordas, pela orla da vida, e nessa praia eu andei nua revestida de testemunhas. Tanto que você é uma delas.
Mas não quero dizer muito. Quero é não precisar explicar nada, porque o que ficou para trás já é como que livro morto, explica-se por si só, reduz-se a si mesmo tal qual é e você o vê. Com essa liberdade toda, você o vê.
Quero é que a minha opinião seja dita, que transpareça em mim essa vontade de momento, não a de ir longe, de parar, de não falar, de não ouvir, não. Quero é intentar nada, inventar a vontade do existir, esta sim, só esta concebível agora. Do resto há o resto, os resquícios amarelecendo-se por longo tempo de exposição à luz dos fatos, as noites mal dormidas, estes todos também senhorezinhos de si. Do resto há ainda o que advém do resto: estas incertezas certas de si, e os sorrisos ousados direcionados aos mesmos protagonistas do teatro dos vivos. Eis que aí me reconforto, é nessa hora mesma que se me escapa um sorriso, quando das tuas redescobertas, conto novas estórias...

quinta-feira, 10 de junho de 2010

de manhãzinha.


A paciência encobriu os olhos de uma sonolência atípica quando o sol se manteve por detrás das nuvens esta manhã. Esperava-se as horas do entardecer quando ainda cedo os pássaros sobrevoaram tímidos as nebulosas lá em cima. As pessoas, era visível em seus olhos, mantinham aquela palavra inaudível presa à língua, preparada para sair de súbito quando o instante lhes ocorresse.
Contudo, os turistas abaixaram o tom da voz, somente o vento foi ouvido no cais. O sol caloroso na memória, mas ainda do porvir não brilhou, esqueceu-se de nós, e depois foi esquecido.
 Segui um grupo de gaivotas à beira do mar, o impulso vital da existência enquanto as ondas tomavam forma que não essa espessa à frente dos olhos crus.

Então o mar. De uma grandeza insondável, assustador. Amplo à linha do horizonte, fiel a esse desenho sublime, comprometido com o infinito acinzentado dessa existência inerte. Não sei que mistérios encerra, não sei aonde se dá por fim vencido, quando já o esqueceram, não sei aonde se entrega, que praias banha em ilhas distantes, não sei. Some, à frente das mãos abertas, some, engrandece à medida em que desaparece do alcance dos olhos, da visão efêmera da consciência, da lógica inefável do conhecimento.
É preciso que eu diga, de uma vez por todas, para enfim aceitar a realidade em que me encontro, que vejo vocês em tudo isso.


sexta-feira, 4 de junho de 2010

Sobre meus esforços por esquecer.

Está ali, diante dos meus olhos, está ali. Existe, permanece, é matéria ao alcance das mãos. Começo a pensar que é inapagável à medida em que insisto em esquecer. Vê, argumenta para que eu veja, respira esse ar gelado que invade nossos pulmões. Diz é difícil. Ainda negligencia? Esforço-me para ouvir ao passo que mantenho os olhos afastados para não gerar confusão na mesa. Digo isso, sim, é difícil.
Está também aqui, logo em frente, sobre a cama, nas paredes, onde houve meu toque sobre a superfície das coisas no quarto, onde deixei sem o querer o magnetismo desse meu ser que vive, os pensamentos que compõe a vida além da vida, acerca da vida.
Homens estrangeiros em cidades distantes, mulheres ainda moças a passear em praças de assexualidade, com tanta candura na cama, a minha vontade está longe de terminar esta noite. Sufoco, apago vestígios, descubro que memórias são inapagáveis mesmo com tanto ardor por esquecer. Depois acendo cigarros, sobretudo escrevo, caminho, escrevo novamente. Aos poucos esqueço, volto a lembrar.
Esses amantes me matam, pouco a pouco, com o desejo além do desejo, a vontade inominável que se estende além da morte. Poder-se-ia dizer que é o inevitável, este tipo de desfecho batido, e mesmo assim eu me veria presa à estas paixões terrestres, submetida a elas com esse mesmo livre arbítrio pulsante, a regalia que deuses épicos nos concederam em sua benevolência.
Entretanto essa regalia de os apagar, um a um, os amantes que me tomam em manhãs azuis, inexiste.