domingo, 17 de maio de 2020

sobre viajar no tempo


Outro dia improvisei uma estante, retirei os livros das caixas que se amontoavam no quarto, deposite-os nas robustas prateleiras. O trabalho durou um par de horas, talvez mais.. Não que eu tenha trazido minha singela coleção: ela fica na casa de minha mãe. Tampouco pela sutil quantidade de livros de que disponho no momento, mas pela nostalgia que me abraçou durante a tarefa e me furtou a consciência.

Obriguei-me a acolhe-la e deixei o tempo perdurar o tanto que bastasse para sentir que estava, de alguma maneira, reorganizando as ideias internamente. O rito prostrou-se diante de mim e me convidou a rever a época em que permanecia nessa casa de minha mãe, trancafiada no pequeno quarto que me fora destinado e onde eu me escondia sob muralhas de livros de todos os tipos. Eu sempre fui uma pessoa de "poucos amigos", do contrário, conversava mais comigo mesma ou era com um eu superior imaginário mais inteligente e forte do que eu própria poderia ser na ocasião. Os outros, as pessoas comuns, com suas famílias de margarina não poderiam alcançar tão peculiar entendimento e quando eu - na esperança fugaz - me entretinha com eles, parecia apenas falar sozinha. Pois bem, falava então com esse meu eu superior.

Às vezes penso que me tornei dissociada de algumas experiências para me proteger, mas era um escudo tão fino, tão subjetivo que eu não pude deixar de captar as ondulações e as tristezas daquela época. Tive uma infância difícil e não estou certa, ainda, de que consigo escrevê-la. A verdade é que nunca tentei declaradamente escrevê-la e tampouco me inscrevi em alguma terapia. Seja como for, ontem li uma frase que me atingiu sorrateiramente e me deixou em estado de dissociação do tempo-espaço que supostamente meu corpo ocupa momentaneamente. A frase dizia mais ou menos, por essas ou outras palavras, que perdoar é rememorar as lembranças do passado e retornar ilesa delas.

Ora, note que fiquei nesse rito das prateleiras improvisadas por mais de hora e me deixei levar pelas janelas da alma, atravessando essas mesmas ondulações de outrora. Lembrei-me com dor de alguns fatos e senti profundamente a carne arder. Depois, esse outro eu, um eu superior prostrou-se ao meu lado com igual interesse - não pelas ocorrências em si, mas olhava-se todo a mim - e me estendeu a mão para que eu pudesse sobrevoar os fatos com distanciamento novamente. Viajamos minutos, talvez horas, até que assentei sobre esse corpo que vos escreve.

Senti quão aconchegante me foi e ainda é esse eu familiar. Ansiava por ele. Em verdade, parece-me, nunca estive sozinha. Há uma certa sabedoria milenar disposta em nossas células, dizem os sábios. Essa é uma verdade que sempre me pertenceu, com a qual me envolvi muito na infância e talvez seja por isso que dizem que amadureci muito rápido na vida. Quero dizer, dizem que as vicissitudes nos amadurecem invariavelmente... e posso reunir milhares delas só com um cerrar de olhos. Ainda estão vibrando em meu campo, embora agora eu tenha mais consciência sobre o que posso fazer com elas.

De fato, amadureci, apenas não sei se pela sucessão de dores e desafios, mas talvez porque, apesar de tudo, independente do lugar e das condições de que dispunha, sempre tive a companhia de um eu superior que esteve e está aqui e agora comigo. É a ele que me entrego para escrever qualquer palavra, pareça ela benéfica ou má. Eu me entrego a quem eu sou e viajo pelo tempo acompanhada por mim como ninguém mais me faz sentir nesse mundo.