quarta-feira, 30 de setembro de 2020

Vênus em Peixes

Image: Nicolas Lobos

 

Assumindo para mim que talvez leias estas palavras algum dia, sinto-me sozinha na curvatura da confissão que não devo fazer abertamente neste texto platônico. Assim, sorrateiramente e de forma muito velada, oculto o palpitar de um imenso oceano azul anil de ansiedade enquanto minhas pupilas se dilatam quando tu rompes o silêncio da sala, com teu vermelho-marte. Tua imagem muito frágil ainda fixada na frente dos olhos, fixada por uma extrema vontade da existência, devo insistir -  e o teu frêmito falseável, inventado pela minha mente, confrontam minha declaração racional todas as manhãs, como a persistência de um dia nublado no domingo. Será possível que a mente, sendo a primeira das esferas míticas existentes no universo que nos circunda, é mutável a tal ponto de que algum dia cheguemos a nos ver - tu a mim, como eu a ti - simultaneamente sob o fremir dos mesmos anseios? Pergunto-o ao quarto solitário no amanhecer e obscurecer do tempo eterno, mas ele, tal como tu, não me refuta.

domingo, 17 de maio de 2020

sobre viajar no tempo


Outro dia improvisei uma estante, retirei os livros das caixas que se amontoavam no quarto, deposite-os nas robustas prateleiras. O trabalho durou um par de horas, talvez mais.. Não que eu tenha trazido minha singela coleção: ela fica na casa de minha mãe. Tampouco pela sutil quantidade de livros de que disponho no momento, mas pela nostalgia que me abraçou durante a tarefa e me furtou a consciência.

Obriguei-me a acolhe-la e deixei o tempo perdurar o tanto que bastasse para sentir que estava, de alguma maneira, reorganizando as ideias internamente. O rito prostrou-se diante de mim e me convidou a rever a época em que permanecia nessa casa de minha mãe, trancafiada no pequeno quarto que me fora destinado e onde eu me escondia sob muralhas de livros de todos os tipos. Eu sempre fui uma pessoa de "poucos amigos", do contrário, conversava mais comigo mesma ou era com um eu superior imaginário mais inteligente e forte do que eu própria poderia ser na ocasião. Os outros, as pessoas comuns, com suas famílias de margarina não poderiam alcançar tão peculiar entendimento e quando eu - na esperança fugaz - me entretinha com eles, parecia apenas falar sozinha. Pois bem, falava então com esse meu eu superior.

Às vezes penso que me tornei dissociada de algumas experiências para me proteger, mas era um escudo tão fino, tão subjetivo que eu não pude deixar de captar as ondulações e as tristezas daquela época. Tive uma infância difícil e não estou certa, ainda, de que consigo escrevê-la. A verdade é que nunca tentei declaradamente escrevê-la e tampouco me inscrevi em alguma terapia. Seja como for, ontem li uma frase que me atingiu sorrateiramente e me deixou em estado de dissociação do tempo-espaço que supostamente meu corpo ocupa momentaneamente. A frase dizia mais ou menos, por essas ou outras palavras, que perdoar é rememorar as lembranças do passado e retornar ilesa delas.

Ora, note que fiquei nesse rito das prateleiras improvisadas por mais de hora e me deixei levar pelas janelas da alma, atravessando essas mesmas ondulações de outrora. Lembrei-me com dor de alguns fatos e senti profundamente a carne arder. Depois, esse outro eu, um eu superior prostrou-se ao meu lado com igual interesse - não pelas ocorrências em si, mas olhava-se todo a mim - e me estendeu a mão para que eu pudesse sobrevoar os fatos com distanciamento novamente. Viajamos minutos, talvez horas, até que assentei sobre esse corpo que vos escreve.

Senti quão aconchegante me foi e ainda é esse eu familiar. Ansiava por ele. Em verdade, parece-me, nunca estive sozinha. Há uma certa sabedoria milenar disposta em nossas células, dizem os sábios. Essa é uma verdade que sempre me pertenceu, com a qual me envolvi muito na infância e talvez seja por isso que dizem que amadureci muito rápido na vida. Quero dizer, dizem que as vicissitudes nos amadurecem invariavelmente... e posso reunir milhares delas só com um cerrar de olhos. Ainda estão vibrando em meu campo, embora agora eu tenha mais consciência sobre o que posso fazer com elas.

De fato, amadureci, apenas não sei se pela sucessão de dores e desafios, mas talvez porque, apesar de tudo, independente do lugar e das condições de que dispunha, sempre tive a companhia de um eu superior que esteve e está aqui e agora comigo. É a ele que me entrego para escrever qualquer palavra, pareça ela benéfica ou má. Eu me entrego a quem eu sou e viajo pelo tempo acompanhada por mim como ninguém mais me faz sentir nesse mundo.


quarta-feira, 22 de abril de 2020

Desejos reprimidos inesperados

Autorretrato, 2009

Faz um tempo notei que em sonhos não temos mantido o distanciamento social.
Ademais, nem mesmo você tem mantido o matrimônio e me encontro surpresa pelos movimentos tão claros quando você se despe à minha frente, como se de fato eu já houvesse antes dialogado com esse corpo que me espreita, soturnamente tão íntimo.

Em especial é preciso dizer que, de alguma forma, existe um horizonte completamente distinto daquele que você me apresenta pessoalmente. Uma coisa é quando você olha e me cumprimenta socialmente, ainda que eu perceba, de canto, os seus olhos castanhos me espreitando. Porém, outra situação se revela quando chamo seu nome dentro da caixinha obscura da minha mente. Como foi que preenchi tão ilustres imagens sem nunca ter o acesso à intimidade?

Quero dizer, parte sua continua intacta e isso pode contribuir para a construção. O distanciamento e a formalidade, a aparência do medo de fazer descobertas contrárias ao seu projeto de vida parecem se projetar sempre de você, como um desafio convidativo feito o exalar de uma flor silvestre. Mas, então, quando cerro os olhos e sou pega desprevenida pelas suas feições assustadas e ansiosas, o seu corpo despido me ocupa as linhas do mistério e vai tomando conta da tensão poderosa que me escala vértebra por vértebra e explode em contrações prazerosas.

É verdade que somente esta semana sonhei duas vezes. Às vistas rotineiras, não poderia supor que isso nos fosse possível. Na verdade, por toda a sua postura formalizada, me é impossível conceber de olhos abertos tais atos. Mas você me perturbou as ondulações da mente quando enfim entreguei-me ao sono profundo. Não bastou um dia, preencheu-me dois. De modo que em dois dias distintos acordei atravessada pela força da lembrança de um desejo. Por sorte, na quarentena não nos olhamos, não saberia talvez ocultar esse contato obscuro que tivemos na transparência dos meus olhos azuis. A sua astúcia não me perderia de vista, sei bem.

Alguns dizem que em sonhos refletimos nossos desejos mais íntimos. Outros afirmam - talvez esperançosos - que neles somos livres e tão mais vivos do que quando despertos e que é possível um encontro etérico. Não sei que via escolher, entretanto minha parte cientista me diz que são desejos reprimidos e me esforço por entender: seriam apenas meus?


quinta-feira, 19 de março de 2020

um ano de solitude


Em março as pessoas se assombram com a quarentena imposta por um vírus de origem asiática, sem contudo saber que a cólera não tem a cor que não a própria de seus reflexos. Olho-me no espelho e relembro, vivendo ainda sob a carne, as marcas do tempo. Minha quarentena não faz somente os dias aí exigidos pelos governantes do mundo.

A verdade é que assentei minha alma sobre este corpo há exatos trezentos e sessenta e cinco dias.

Separei-o do mundo então: nada a dar a quem nada pode compreender a magnitude desta essência que se encontrou a si. Nenhum suposto amor, nenhuma troca de libido terrena pode me alcançar em altura tal qual a esta que estabeleceu-se entre mim e meu ser.

Decidi outrora com olhos racionais, ponderei, como juiz de mim, que me manteria fora do mundo por saber-me tão graciosa e paradoxalmente invisível nele.

Passeei por longos desertos, acumulei poeira.
Embora no início julgava difícil estabelecer essa relação de amor comigo mesma, fui ao encontro deste ser que em mim habita e obliterei compartilhar essa relação com qualquer outro alguém.
Ficamos então, eu e eu mesma nesse espaço de tempo, sem relação com o espaço em si, mas com o tempo que eu divisava distante, querendo expurgar toda a carga anterior do mundo.

Por um tempo tateei no escuro ou era sob o mérito de uma luz tão vibrante que sequer poderia enxergar a mim mesma. Rendi-me então no branco leitoso da existência.

Vieram três, talvez quatro pobres almas a percorrer o entorno do meu deserto. Deixei-as cair nas próprias conclusões e pedi que a linha suntuosa do tempo lhes retirasse do meu caminho.
Pode ser que levantei a voz para as mais persistentes, disse-lhes saiam agora e não retornem. Demarquei as saídas, as palavras, as estórias. Tudo para não deixar nenhum mal entendido e não cometer injustiças.
Depois titubeei, é verdade, estava também eu um tanto cega com essa luz. Mas não retrocedi.
Segui fitando o branco que me engolia hipnotizante.

Até que fui deixada em paz. Na falta de encontrar alguém à altura, encontrei a minha própria mão, corpo sereno a me vestir. Vesti-me de sua solicitude e me entreguei.

Não é por nada que passam-se os dias da quarentena de março como passam-se normais os meus dias. Só mais um, como qualquer outro. Aqui, do alto de onde observo o mundo a dar as suas voltas, resta-me apenas respirar. O meu espírito se acomodou ao corpo e não deseja se entregar aos que estão cegos de mim.

Foi o ano mais revelador de minha vida e ainda assim, continuo higienizando as lembranças por esses dias. Deixei meu corpo então suar, expelir os seus odores sagrados. Aos poucos sinto que rompo as membranas adjacentes, vibrante e maciça e completamente rendida à força de ser quem sou.



sexta-feira, 7 de fevereiro de 2020

trinta e dois



Não fiquei milionária aos 30, muito menos aos 32. Pra falar a verdade, isso até está um tanto longe de acontecer...
Tudo bem, porque não foi planejado e, se acaso tivesse, confesso que teria sido bem aquém da posição em que larguei na vida. Portanto, seria no mínimo, milagroso.

O fato é que em dias de arco-íris e manhãs chuvosas tudo o que tem realmente me importado é viver os meus dias com o sabor do momento. Sonhar é lindo, faz a gente engrandecer a alma, mas ainda é muito pouco perto de quem tem a dignidade de ser e estar no presente. O presente.

Dito assim, palavra suave, quase cantarolada no pensamento:
- O presente.
Os meus pulmões se enchem de enérgico suspiro. Não sei se é o sentido da língua portuguesa ou se pelo oportunismo à licença poética. Mas presente é algo que realmente conta "quando faz os dias que nasceste".

Se o sentido presenteia a jornada no exato momento em que esta acontece, não é ao fim que o milagre acontecerá mas hoje, agora mesmo, ao passo que escrevo e vou preenchendo meus dias com a minha existência consciente.

Gratidão pela oportunidade de ser e estar.


segunda-feira, 3 de fevereiro de 2020

Seahorse



Eu havia evitado a todo custo olhar para quem eu sabia que me traria a dor de não ser um espelho.
No entanto, quis o meu anjo que eu enfrentasse tão temida dor.
Prostrei-me rendida a fitá-la então.

Foram os olhos que primeiro tatearam aquela pele de veludo.
De súbito, a curva da tua boca também me fez salivar.
Eu poderia ter estado ali nos teus rijos lábios e saberia que Narciso existe quando Ela olha para você.
O perfume exótico de sua flor me excita as narinas.

Não me vi, contudo, nessa posição e então a libertação veio para apaziguar a dor da revolta.
Entendi quase tardiamente que o caminho correto se abrira para mim num passado remoto.
Que era mil vezes melhor estar aqui e não afogada no lago que agora abriga você.

Então abri-me as asas de águia que eu própria permitira podar.
Levantei meu desajeitado voo e os primeiros humanos já começaram a perceber.
Com a sobriedade que me abraça, vou-me embora
mas queria que soubesses que eu te desejo toda sorte.