quarta-feira, 26 de maio de 2010

O som do tamborilar dos dedos.

O vento. Ainda nos cabelos dela, demora-se. Uma hora ou outra o sono virá. Transportará este corpo cansado pendendo na janela para o aconchego dos sonhos imateriais, resultará no enternecimento de que nada mais é esperado além disso e pronto: assim tal qual é, vê-se essa mulher na janela, pede-se que permaneça, que mantenha a postura, essa dádiva que é para o desenho, até mesmo a pintura. Pede-se, ordena-se que fique ali parada, altiva e contraditoriamente decadente, enquanto o pêndulo da indecisão de que lhe queiram tanto bem rouba-lhe a cor das faces. Ela não sabe, em sua insônia ela negligencia, essa casualidade em obra divina que representa, ela negligencia absolutamente.

Digo-lho ao vento. Porque ela é esquecida de si mesma, digo baixinho e estremeço por causa da intensidade que me atravessa. Faço parte dessa mulher, faço parte inteira e incompleta, também eu sou o vento nos seus cabelos, a providência divina. É como se ela me dissesse, o tempo todo, é como se usasse esse silêncio para comunicar-se comigo, eu que sou sua anima. Fica ali imóvel, vê mas não enxerga, olha levianamente para fora por motivos que também ela, em parte, os desconhece. Se lhe perguntassem se é por causa de um amor, sim, é por causa desse amor, por causa de sua partida, por causa também das palavras rudes ditas por ele? sim, e o esquecimento. Também isso, o esquecimento.
Vejo que agora já o sono lhe abate, já lhe espreita algo maior que esse silêncio ou a própria loucura. Ali, sob as pálpebras cansadas, ela denota sinais dessa derrota, esse cansaço originário de uma longa espera, a pele fresca e pálida por demorar-se no equívoco.
À parte, nada lhe ocorre que infrinja essa lei pessoal, tampouco que ultrapasse a necessidade da espera que inventou para si mesma. Não se pode pedir-lhe mais nada, nem que pare nem que prossiga com essa violência contida, o ato da espera, o suplício de se repetir, mas não é de todo verdade, deve-se exigir-lhe com direito que mantenha o olhar brutal que me invade feito o crepúsculo nas noites de inverno, sempre a genialidade do acaso. Pronto, exige-se, é permitido. Isso pode, ela diria se pudesse, isso e nada mais. Portanto talvez eu rompa o silêncio, talvez, o bastante para sempre.

- Por que tanta tristeza esta noite, Margaret?
- Esta noite, como em qualquer outra. – Ela dá de ombros, responde ainda questionando se quem fala pertence a si mesma: - Creio que são as flores... digo, a ausência delas, das cores.
- As mudanças de estação a deprimem, é verdade.
- Não é isso.
- Seja como for, o inverno também acaba.
- Para você sempre é fácil dizer.
- E isso por quê?
- Você é seu pequeno sol.

terça-feira, 18 de maio de 2010

de sonhos e pesadelos.



Quando amanhece, essa luz entrecortada pelas construções inacabadas ilumina este rosto diante do espelho. O movimento inexiste no quarto, a sobriedade é alcançada através dessa verdade congelada no filme de minha vida.
O quarto, submetido nesse caos em construção, o corpo que não se move, intacto, permanece. Lá fora, através das arestas, o crime é um fato. No mundo dos coadjuvantes, o desdém dos apaixonados, as casas por sobre as casas, o povo faminto desse lugarejo miserável é como um crime, como a morte que permanece.
Você permanece também como parte de uma lucidez intacta na memória dos meus dias. Mantém-se paralisado enquanto a fotografia acontece, intocável. Você acende um cigarro, palavras se constroem diante dos olhos e morrem pisoteadas por pquenas incertezas.
É porque preciso romper esta perfeição que lhe falo a primeira vez, digo para que abandone, esqueça dos silêncios destas paredes opressivas ou que então esqueça essa estória de amor. Você não me vê, você está absorvido como que por integridade, essa lealdade que reserva para si próprio. É porque você está entregue ao mesmo silêncio, porque simplesmente está entregue, que o instante nos acontece. É esse o momento de decidir o que fazer com o que foi feito ou não. Deixa-lo para que se torne ou deixe de se tornar parte importante no mundo das significações. Aos poucos você atinge esta perfeição de não saber nada, de não intentar sabe-lo. Você não me olha, diz:
- Com você, o que houve?
As palavras, como lhe caem bem, ditas por você têm maior peso. Respondo que foi isso, que é isso, esse silêncio soturno, esse vazio, foi isso que me despertou para essa vida paralela à sua, por causa do que você diz sem mover os lábios quando não os move, quando mantém esse olhar distante, evasivo. Digo que é culpa sua, explico.
Então você sorri quando me daria o contrário, você sorri, dá de ombros. Mesmo você já me esqueceu.

quarta-feira, 12 de maio de 2010

Ainda que eu encontrasse palavras para dizer,

agora atravessa estas ruas um silêncio perturbador, imensurável.
A imobilidade do feriado se apossou das avenidas, submergiu a cidade no que há de mais brutal no mar do esquecimento. É como se, de súbito, os passos tivessem resolvido desabitar o mundo dos asfaltos. Nem mesmo um carro ou um ambulante solitário. Ninguém nesse direito de ir e vir. Ninguém em dobras de esquinas, em praças verdejantes, muradas que cercam prédios, nunca. Ninguém, nunca.

Pode-se apalpar o vazio nítido das vitrines das lojas fechadas, o teatro mudo, a beira-rio intacta, sobretudo a margem do rio, esse silêncio que flui numa torrente intransponível.
Somente o vento, leve e impessoal, preenche o campo de visão dessa cena. Faz isto por meios quase implícitos, através dos vestígios do outono que ficaram pelo chão.
Vejo que a mobilidade tem certa urgência em acontecer, que mesmo agora é possível prever os movimentos subseqüentes de um dia de mudez absoluta, que o verbo que não é dito nas ruas é suscetível ao próprio silêncio, que desprende-se dos telhados das casas essa luz feita de palavras inatingíveis, ao ponto em que o silêncio torna-se uma nota na música da vida e mais nada.
Esta pausa eu a reconheço, esta pausa. É em mim o motivo para sair sozinha, para desencadear buscas imaginárias de idas sem voltas em torno dos mesmos caminhos de sempre. Esse silêncio vem muito mais de mim do que das ruas, despenca das pálpebras cansadas, percorre toda a extensão da boca, dissolve-se sob o azul do céu e esmaga esse dia inalcançável através da umidade dos olhos. Esse silêncio eu o reconheço quando me olho no espelho, esse silêncio sou eu, subjugada por ele, é o que me tornei a partir dele, e por causa disso tornei-me aquilo que escrevo.