quarta-feira, 29 de fevereiro de 2012

$100


eu seria mais feliz se controlasse as lembranças que me pegam de surpresa? eu com certeza não sou mais agradecida por cem reais, caro senhor, mas digo que sim, que agradeço, por educação.
houve um tempo, durante a curta infância, em que eu poderia lhe sorrir agradecendo por uma bala de goma dada de bom grado, num desses momentos que te pegam distraído, tamanha benevolência escapando mãos afora, e eu agradecia, sim, com os olhos marejados de alegria.
mas eu não consigo disfarçar essa tristeza que encharca os meus olhos quando me lembro desses tratamentos na infância e pré-adolescência, ou devo dizer grande parte do tempo?, estes que se contasse a todos, os podres de meu senhor, derrubariam castelos já arruinados esfarelando verdades inconvenientes. Levará então quantas noites e dias, quantas dezenas de anos para me escapar das marcas internas, se cada investida tua, numa cena que jamais existiu sinceramente, me corrói e me lacera, tal como na infância, ao teu bel prazer acontecia? Eu não sei se você finge não lembrar, ou se não lembra de porra alguma, pai, ou devo dizer, você, apenas você, ou sujeito brilhante que arcou com as minhas despesas. Assim como se perde o fio da meada em perguntas muito extensas/intensas, e supondo que eu não conheça tal propósito disso tudo, meu senhor, ando por aí te agradecendo certa de que muito estou errada ou confusa ou submissa: obrigada, pai, por tudo ser assim. Eu vivo esse dilema, quase tão bem quanto me foi proposto viver. Pois ao menos encontro o sossego no desassossego que me tatuasse, porque aprendi a ser assim, e assim sendo, estou em paz, triste e em paz.

segunda-feira, 13 de fevereiro de 2012

impossibilidade

Nem posso tocá-lo.  Então fique distante por agora. Nossos abraços e sorrisos são nossos abraços e sorrisos. Não é necessário diminuir ou aumentar essa estória. Tudo está aí. Nossos beijos foram tatuados na impossibilidade de acontecer. Essas nossas mãos. Essas nossas mãos são como lágrimas de ansiedade, nossos pés são duas vias de direções contrárias, e as palavras se perdem no caminho. Se eu ficasse mais tempo, saberia me explicar? Eu sei que é um tempo de não se ter tempo, mas fique distante agora e seremos eternos na ausência de nós dois. 


"So tell me when my silence's over, You're the reason that I'm closed
Tell me when you hear me falling, There's a possibility it wouldn't show"


sexta-feira, 3 de fevereiro de 2012

Desapego

Para J.

Os olhos dela denunciam na falta das palavras corretas, o corpo precisa dizer além do que a boca insiste em calar.
Ela me remete essa dor interior, dor que palpita no gosto jamais imaginado que teria, de tão amargo e rebelde, descendo garganta abaixo.  Ah, sem esse rancor todo, sem essa vertente de mágoa na minha direção eu a veria melhor, mas veja, note que os olhos dela ainda dizem mais do que as minhas palavras e eu não consigo enxergar um palmo à frente além do que seria pior ainda de imaginar, do que chamar o meu nome e não obter qualquer resposta.
Vou deixá-la ali com a mudez nos lábios, passando no outro lado da rua, tão distante das mãos que eu estendo, porque agora é inalcançável buscá-la de maneira lívida. Esse peso que carrega, ela faz questão de carregar sozinha e tudo pode afastar-me dela e nada pode faze-la mudar de idéia, nada pode demova-la. Esse seguir sem rumo é uma trégua passageira sem permissão para acontecer, é ainda a vida dela decidindo-se por meios que me ultrapassam e que nem me cabem decidir.
Então voa pássaro machucado, voa e voando conserta essas asas despedaçadas. Não teria o menor sentido lembrar da angustia agora que reluto nela. Porque não são minhas as revoltas incontidas, deixei estar e não por descaso, foi o peso que me fez largar tão macias mãos...