sábado, 20 de julho de 2019

For Emma, always.


Hoje acordei ouvindo as lamentações de Adele e pensei como já ouvi tudo isso antes, ao seu lado, os seus longos e lisos cabelos cúmplices. Tenho feito algumas centenas de reavaliações sobre a minha trajetória. Queria deixar claro que você não me escapou sequer um minuto, meu bem.

Lembro-me de sua cara sonolenta pela manhã, quando fazia seu café amargo na cozinha da agência.
Sempre nos amávamos à nossa maneira no chat, trocando toda a sorte de boas indicações de filmes, livros, músicas e confissões. Na ocasião, Adele guiava a nossa descoberta. Era também inverno e me lembro do calor que se desprendia de nossos corpos enquanto conversávamos no banco que beirava o rio, no crepúsculo dos dias. Você acendia os meus cigarros e eu, os seus. Os sorrisos vinham fáceis, cúmplices.

Você se lembra, meu bem?
Eu te contava as minhas dores e você os seus amores. Não era Thabata a moça dos olhos de ressaca?
Não entendo como vocês não se casaram até hoje. Mas deve ser porque a vida precisa continuar o seu mistério e nós temos que aprender a respeitar a nossa alegre ignorância.

Mas você suspirava ao falar dela e eu estremecia no banco, completamente entregue aos seus trejeitos. Sei que houve ocasiões em que eu poderia sentir um beijo invisível entre nós, era uma sensação quase táctil. Porém, nunca nos encontramos descompromissadas nesse banco da praça.

Um ano mais tarde, você me recebeu em sua casa na véspera do vestibular. Como te explicar que nos desencontramos em uma noite tão propensa aos mais intensos pecados? Perdão. Eu recém havia me metido em uma enrascada, das grandes, e ensaiava fidelidade a alguém que jamais poderia me retribuir. Sei que desencontrei seus lábios propositadamente, mesmo tendo puxado seu corpo sobre o meu, rendida. Apenas queria que você soubesse que não foi uma tarefa nada fácil. Que ao relembrar aquele momento, ainda sinto, mesmo hoje, a verdadeira força dele me agitando a respiração.

Para onde vão os sentimentos que a gente aprisiona? Ficam enclausurados dentro de nós e nos aprisionam a eles em uma espécie de remember eterno.


quarta-feira, 10 de julho de 2019

Mercúrio retrógrado


Um feixe de luz solar adentra a minha janela, traz consigo o frio da temporada invernal que se repousa sobre a província. Vagarosamente eu me espreguiço e penso que se tem algo bom na vida de um desempregado é poder prestigiar esse momento tão único.
Levanto-me então na calmaria e na ansiedade: um misto que abala minhas dimensões celulares desde a mensagem do aviso prévio indenizado. As mãos muito frias, as unhas muito vermelhas, os olhos muito azuis e a cabeça cheia de cabelos. 

Após o banho e o demorado café, saio pedalando para o parque. Eu mesma e mercúrio retrógado.
Nunca entendi esse domínio que a força da vida faz exercer em alguns momentos sobre mim. Mas respeito quando ela me chama para resolver antigas pendências, quebrar velhos entraves e me abrir com essa matriarca que agora me ouve, sentada no banco da praça.

Poderíamos jogar xadrez, pensei tolamente. Mas sei que a vida nos reservou esse momento para uma grande faxina. Não sei que tipo de transformações virão especificamente. Ela pede que eu me expresse, que eu conte ao papel os amargos e adocicados da vida. Sempre pensei que as transformações aconteciam para aqueles que ouvem o tom do silêncio, nunca para aqueles que esboçam sonoras palavras. Mas não doeu, exatamente, ao verbaliza-la: cocaína.

Finalmente me livrei do vício. Tive certeza.

Não foi há sete ou oito anos, quando a grosso modo eu evitava entrar em banheiros públicos por conta do cheiro químico que me atiçava as narinas e fazia embrulhar o estômago de ansiedade. Não, não. Foi mesmo aqui, nesse espaço-tempo, onde poderia jogar xadrez com essa pessoa que ensaia toda a atenção ao que digo.

- Cocaína. - E as palavras se dissiparam trêmulas.

Não senti mais aquela vergonha humana em minhas entranhas ou o suor frio de uma confissão. Agora posso até escrevê-la e rir-me dela. A mente até tenta pregar peças, diz-me que é arriscado escrever, o que será que podem as pessoas pensar a respeito? Dane-se diz meu novo ser, com olhos muito reluzentes. Os azuis de meu pai. Um dane-se e um muito grata.