quarta-feira, 22 de abril de 2020

Desejos reprimidos inesperados

Autorretrato, 2009

Faz um tempo notei que em sonhos não temos mantido o distanciamento social.
Ademais, nem mesmo você tem mantido o matrimônio e me encontro surpresa pelos movimentos tão claros quando você se despe à minha frente, como se de fato eu já houvesse antes dialogado com esse corpo que me espreita, soturnamente tão íntimo.

Em especial é preciso dizer que, de alguma forma, existe um horizonte completamente distinto daquele que você me apresenta pessoalmente. Uma coisa é quando você olha e me cumprimenta socialmente, ainda que eu perceba, de canto, os seus olhos castanhos me espreitando. Porém, outra situação se revela quando chamo seu nome dentro da caixinha obscura da minha mente. Como foi que preenchi tão ilustres imagens sem nunca ter o acesso à intimidade?

Quero dizer, parte sua continua intacta e isso pode contribuir para a construção. O distanciamento e a formalidade, a aparência do medo de fazer descobertas contrárias ao seu projeto de vida parecem se projetar sempre de você, como um desafio convidativo feito o exalar de uma flor silvestre. Mas, então, quando cerro os olhos e sou pega desprevenida pelas suas feições assustadas e ansiosas, o seu corpo despido me ocupa as linhas do mistério e vai tomando conta da tensão poderosa que me escala vértebra por vértebra e explode em contrações prazerosas.

É verdade que somente esta semana sonhei duas vezes. Às vistas rotineiras, não poderia supor que isso nos fosse possível. Na verdade, por toda a sua postura formalizada, me é impossível conceber de olhos abertos tais atos. Mas você me perturbou as ondulações da mente quando enfim entreguei-me ao sono profundo. Não bastou um dia, preencheu-me dois. De modo que em dois dias distintos acordei atravessada pela força da lembrança de um desejo. Por sorte, na quarentena não nos olhamos, não saberia talvez ocultar esse contato obscuro que tivemos na transparência dos meus olhos azuis. A sua astúcia não me perderia de vista, sei bem.

Alguns dizem que em sonhos refletimos nossos desejos mais íntimos. Outros afirmam - talvez esperançosos - que neles somos livres e tão mais vivos do que quando despertos e que é possível um encontro etérico. Não sei que via escolher, entretanto minha parte cientista me diz que são desejos reprimidos e me esforço por entender: seriam apenas meus?