quarta-feira, 10 de julho de 2019

Mercúrio retrógrado


Um feixe de luz solar adentra a minha janela, traz consigo o frio da temporada invernal que se repousa sobre a província. Vagarosamente eu me espreguiço e penso que se tem algo bom na vida de um desempregado é poder prestigiar esse momento tão único.
Levanto-me então na calmaria e na ansiedade: um misto que abala minhas dimensões celulares desde a mensagem do aviso prévio indenizado. As mãos muito frias, as unhas muito vermelhas, os olhos muito azuis e a cabeça cheia de cabelos. 

Após o banho e o demorado café, saio pedalando para o parque. Eu mesma e mercúrio retrógado.
Nunca entendi esse domínio que a força da vida faz exercer em alguns momentos sobre mim. Mas respeito quando ela me chama para resolver antigas pendências, quebrar velhos entraves e me abrir com essa matriarca que agora me ouve, sentada no banco da praça.

Poderíamos jogar xadrez, pensei tolamente. Mas sei que a vida nos reservou esse momento para uma grande faxina. Não sei que tipo de transformações virão especificamente. Ela pede que eu me expresse, que eu conte ao papel os amargos e adocicados da vida. Sempre pensei que as transformações aconteciam para aqueles que ouvem o tom do silêncio, nunca para aqueles que esboçam sonoras palavras. Mas não doeu, exatamente, ao verbaliza-la: cocaína.

Finalmente me livrei do vício. Tive certeza.

Não foi há sete ou oito anos, quando a grosso modo eu evitava entrar em banheiros públicos por conta do cheiro químico que me atiçava as narinas e fazia embrulhar o estômago de ansiedade. Não, não. Foi mesmo aqui, nesse espaço-tempo, onde poderia jogar xadrez com essa pessoa que ensaia toda a atenção ao que digo.

- Cocaína. - E as palavras se dissiparam trêmulas.

Não senti mais aquela vergonha humana em minhas entranhas ou o suor frio de uma confissão. Agora posso até escrevê-la e rir-me dela. A mente até tenta pregar peças, diz-me que é arriscado escrever, o que será que podem as pessoas pensar a respeito? Dane-se diz meu novo ser, com olhos muito reluzentes. Os azuis de meu pai. Um dane-se e um muito grata.



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