quarta-feira, 4 de novembro de 2009

"Doida"

Uma mulher atravessa a rua usando um robe vermelho, desses de banho. Invadiu o trânsito como se pudesse parar um desfile ao acaso, ficou estática ali no meio, sobre as faixas que seguem paralelas. É evidente que ela apresenta sinais de insanidade, leva seu jornal embaixo do braço e usa uns chinelos de pano muito surrados no mesmo tom acobreado de seus cabelos. Observo a cena, extasiada, demoro-me na fração de segundos em que o vento sopra e seu perfume chega até mim entre os estardalhaços das buzinas dos automóveis, que indignados, ressoam a algazarra matinal.

Muito tempo depois, quando já caiu em si, a mulher sacode a testa e caminha devagar, parecendo desvairada, até sumir no horizonte paciente. Ela jamais saberá que nesse instante em que surge de lugar nenhum e some no mesmo destino é fabulosa, porque ela não sabe, eu digo ao vento, porque ela não faz ideia de que é fabulosa eu digo baixinho, para que eu mesma ouça a sentença e faça dela uma verdade eterna.

Isso me faz pensar absurdamente demais sobre estes loucos, que estão presos em seus dormitórios, que usam aquele traje de louco e são vistos como tal. Ninguém jamais os vê, ninguém jamais os ouviu. Jamais. Os loucos da pandemia da idiotice, estes feito a gente, cheios de critérios e fábulas, espalhados sobre os poros da terra tal qual câncer terminal, parasitando enquanto se nomeiam dignos do que pensam e fazem, estes sim, todos loucos, se atirando uns sobre os outros por meio das palavras – e de quando em quando – atirando-se em corpos, em guerras quase surreais de tão atrozes, para ostentar a imagem já falida de poder que criaram em suas férteis mentalidades juvenis – aquela mesma porcaria de imagem que aprendemos assistindo à televisão, tomando coca-cola numa tarde de domingo, fumando a droga de um cigarro na companhia de amigos e bebendo a droga da cerveja – que é ruim pra burro até você se habituar e que no fim você nunca vai gostar de verdade (por que é que você acha que existem no cardápio cervejas com a pretensão escondida no título de menos amarga, afinal, senão para salientar que ninguém gosta do sabor de verdade?).
A mesma pandemia da humanidade, a doença do século, essa droga de certeza avara a respeito do ego, de se acharem o centro de tudo, essa coisa prepotente que vem embutida nos refrigerantes e nos energéticos enlatados, os quais eu e você bebemos sorridentes, com nossos sorrisos amarelos e máscaras de sextas-feiras à noite.
Quando eu me permitia ver coisas que não estas, ter sonhos que não os mostrados na televisão, eu era vista como uma esquizofrênica, até minha melhor amiga chegou a pensar que eu era mesmo estranha. Se eu me sentia mal com tudo isso? Eu queria morrer, o tempo todo, por não conseguir fazer parte do comum. Trancava-me em meu quarto e devorava livros, para supostamente aprender o comportamento que deveria ter diante dos outros, o de dissimular, acobertar, esquecer.

Hoje estou bem nas aulas de integração à imensa colônia, esse tratamento árduo que venho enfrentando desde que tenho consciência de meu lugarzinho fétido no mundo, esse mesmo lugar que você ocupa nele, sim, este espaço curto, temporário – devido à fatal proliferação de nossa raça dominadora.

Esta mulher de robe vermelho, eu já fui ela há muito tempo, era eu, sozinha em minhas épocas de sanidade. Hoje experimento entorpecentes e empurro a droga da cerveja para me integrar aos demais, sempre me arrependendo por dentro. Ou quando acendo a porcaria do cigarro pra lembrar como o fazia alguém. Não é segredo nenhum que já estou doente faz tempo, ainda tenho sonhos que não são daqui, mas estão diminuindo à medida que vou me drogando com a humanidade; e isso é o que faz de mim mais uma verdadeira doida enquanto o vento sopra o que resta de mim aos cantos da cidade.

Nenhum comentário: